Ao segundo dia, o rock! O NOS Alive resolveu, em 24 horas, mudar agulhas e fazer soar mais alto os riffs e os solos das guitarras.
Novo dia, nova e intensa maratona de apresentações variadas para diferentes géneros e gostos. Assim como no arranque do Festival, o dia de ontem tinha de tudo, desde peixe miúdo até aos mais ferozes tubarões. O superpredador maior do dia, como seria de esperar, apresentou-se de dentes bem afiados, prontos a rasgar ouvidos e corações ávidos de rock estridente, saltitão e inquieto. Mas sobre os Foo Fighters há que esperar um pouco, que esta segunda data do Festival começou de forma diferente, com um power trio luso que dá pelo nome de Killimanjaro. Rock agressivo e bem esticado, por vezes até à fronteira do desconforto, isto se pensarmos em ouvidos mais inocentes e delicados. Para os outros, terão agradado. Uma bateria, um baixo, uma guitarra e amplificação a bombar podem sempre provocar convulsões, como bem sabemos. Para o caso, foi mais intenso o ruído do que a substância. Mas são do rock, e isso é sempre um ganho. Rock on, Killimanjaro!
Calcutá tem nome de paragem longínqua, mas no caso vertente, isso é um mero engano. Demos um pequeno pulo até ao Coreto by Arruada, palco simples e simpático, para ouvirmos este quarteto. Pouca gente a ver, embora aos poucos fossem chegando mais festivaleiros. A banda, decidindo acompanhar o número crescente de público, também foi ganhando força e confiança. Nos primeiros instantes, os sons que íamos ouvindo pareciam sair de uma daquelas antigas caixinhas de músicas que todas as avós de outros tempos tinham em cómodas de fina madeira. Tranquilos, os sons dos Calcutá. Engraçados, até. A originalidade não é muita, mas estão agora a começar e o primeiro registo em forma de EP nem sequer ainda saiu, embora esteja para breve. Corria uma brisa fresca, e fomos com ela para outras paragens.

A caminho, portanto. De passagem, ouvimos alguns momentos do que tocavam os Lot, no Palco Heineken. São três, os músicos, e no que fazem prevalecem os teclados e um ou outro momento de vocoderizacão. É fácil apostar e ganhar: devem gostar de James Blake, embora estejam a universos de distância do que faz o mago inglês. Também um pouco de AIR, como aliás a versão de “All I Need” pode confirmar. Não se trata, sequer, de uma imitação. Se fosse, seria demasiadamente inócua e previsível. Há apenas ecos dessa sonoridade, e pouco mais. Preferimoss pensar assim destes portugueses. Seguimos caminho, embora numa passada ainda algo dançante, mas em slow motion.
Quem estreou o palco NOS no segundo dia foi Tiago Bettencourt. O cantautor português tentou puxar pelo público com a “Canção do Engate”, de António Variações, por entre cantigas da sua carreira a solo – como “Maria”, “Só Mais Uma Volta”, “Laços”, “Morena” ou, para regozijo do público, o clássico “Carta”, dos Toranja – mas a tentativa não passaria disso mesmo.
Parámos, minutos depois, no NOS Clubbing. Nova banda lusa. Apetece dizer que com “Cave é outra Story”. Bom rock, melódico e altivo, som de boa escola. Energia a rodos, mas da boa, daquela que faz mexer e que apetece pular. Bons riffs, canções longas e diretas. Mas, no entanto, à quarta banda tuga do dia, nenhuma se expressa em português. Sim, ok, a linguagem da música não tem pátria própria, nem casa com poucas assoalhadas. Tudo nela cabe, mas talvez por isso a nossa língua devesse aparecer cantada um bocadinho mais. Isto não é um lamento. É mais uma constatação a propósito do que ouvimos no início do dia de ontem. Coincidências, talvez. Mas voltando a Cave Story e terminando o que queríamos verdadeiramente dizer: gostámos bastante, principalmente quando ouvimos “Body of Work”, que soa a Pavement por todos os lados. Querem melhor elogio do que este? Pois, também não nos parece.
Savages abriram caminho sem misericórdia, no palco Heineken, mostrando como se dá um concerto a sério. “City’s Full”, “Shut Up” e uma guitarra inacreditável, uma energia arrepiante, a plateia completamente cheia e rendida. A vocalista Jehnny Beth salta ao fosso em “Husbands” e incentiva às palmas, originando uma euforia de bradar aos céus. O girl power ferrenho sentia-se nas letras e na energia enraivecida que vinha do palco. Em “I Need Something New” o baixo mais gordo do festival. Em “The Answer” estava dado o mote para o mosh. Uma força imbatível e os tímpanos a fazer ruído dos aplausos e gritos, Beth a abraçar o público em “Hit Me”, com um público em peso a cobrir o tapete verde do palco Heineken. A intensidade ia escalando com o crowdsurf da incansável frontman, um comboio a vapor imparável a sair das colunas, como um jaguar a rasgar tímpanos e corações, a esmagar crâneos e cérebros. Por fim, “Adore Life” e a referência ao livro The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood, com a emancipadora “Fuckers”. “Obrigado, obrigado, obrigado”, estava a festa montada.

20:30 foi o momento inicial do revivalismo. Andámos para trás e assistimos ao tempo em que os The Cult ocuparam um espaço relevante no mundo da música. Lembram-se deles? Quantos braços no ar a acenar afirmativamente? Enfim, cada qual faça a contagem que entender. Nós, no entanto, dizemos que sim, que nos lembramos bem do impacto da banda, que no entanto (o tempo é sempre uma coisa lixada) foi perdendo importância, extinguindo-se quase completamente. O que vimos ontem em palco foi estranho, mais parecendo um filme que o nosso imaginário ia desbobinando. Mais isso do que uma coisa real, ali bem à nossa frente. Por isso, um duplo veredito: o que a memória nos deu, confortou-nos. Quanto à realidade nua e crua, nem por isso. É o tempo, é o tempo e as maldades que ele nos faz. A nós e aos The Cult, como se percebeu.
No palco Clubbing ouvia-se ao longe os Pista, com Alex D’Alva Teixeira a puxar pelo público, e no palco NOS os Courteeners a acabar. De novo no palco Heineken, Warpaint. Se no primeiro dia de festival Pedro Coquenão apelava à igualdade de género, ao segundo dia sentimo-nos bem com três bandas seguidas compostas apenas por mulheres: Savages, Warpaint e Pega Monstro. Se as primeiras instalaram o caos, as segundas deleitavam. A abrir, a canção homónima do último disco, Heads Up. O nosso espectro aural era preenchido pelos mais belos sons, o cenário e as luzes tratavam de nos hipnotizar. À frente, sombras de cabelos esvoaçantes e canções poderosas e cheias de atitude. Ouvimos o coro delicioso de “Undertow”, com uma guitarra cristalina e os pratos como chicotes em contratempo. Curvávamo-nos perante elas e, antes de “So Good”, Theresa Wayman perguntava-nos se queríamos dançar. Respondíamos com as ancas. O pavilhão todo marcava o ritmo com palmas certeiras que comandavam as vozes e melodias etéreas que chegavam do palco em “The Stall”, que nos ia ao fundo da alma. Tempo para “Beetles”, uma das primeiras canções das meninas americanas e Emily Kokal a dar-nos “Keep It Healthy” com uma prestação lindíssima. A festa fazia-se em palco e no público, a muito aplaudida “Love Is To Die”, mil e uma cores em “New Song”, na qual veio a palco Gabriel Winterfield, dos Jagwar Ma. Cores em todo o lado, as coisas boas da vida numa canção, um verão longínquo de sonhos e fantasias concentrados numa só canção. Deitando a casa abaixo com “New Song”, houve ainda tempo para a abrasiva “Disco//Very”, cheia de harmonias mortíferas. Rainhas, musas, sereias, por elas faríamos tudo. No ecrã, uma camisola a dizer girl power deu o ponto final do concerto. Saímos de coração cheio.
No palco Clubbing ouviam-se os gritos e o ruído bom de Pega Monstro, enquanto no Coreto começava mais uma banda portuguesa, desta vez as manas Cat e Margarida Falcão. As Golden Slumbers fizeram bem o que delas se espera sempre, uma folk abrilhantada pelos particulares timbres das duas meninas. Os acordes das guitarras e as melodias que as irmãs Golden Slumbers nos habituaram começaram a soar no início de uma noite pontuada por boa música. O primeiro tema foi “Mourning Song / Clandestine”, que contou com a ajuda dos presentes para que melhor se cantasse o verso “There’s a hole in my soul, in my heart, from the start”. O público, rendido às vozes calmas mas acertivas das irmãs do folk português, foi acompanhando o repertório (músicas vindas essencialmente de New Messiah, álbum lançado no ano passado), de forma calorosa, gritando no final para mais uma música além das previstas. E assim se fez.

De volta ao palco Heineken para ouvir os Wild Beasts. Os quatro rapazes ingleses tinham duas boas vozes e alguma sensualidade a abonar a seu favor mas isso não foi suficiente para mais do que um abanar da cabeça por simpatia (e para não adormecer).
Até que chegou a hora de Alisson Mosshart entrar em cena. Os The Kills mostraram garra e atitude. Ao nosso lado havia quem jurasse amor eterno à “blondie” de serviço. É fácil perceber, cause she has the looks! Ao lado dela, o conhecido parceiro de Kate Moss também ia a jogo com tudo. Os diferentes géneros estavam satisfeitos, portanto. E quanto à música, o que dizer? Os The Kills têm já quatro discos de longa duração e a energia que vai saindo das suas canções foram de baixa rotação e não conseguiram ir contagiando as milhares e milhares de pessoas à frente do Palco NOS. No entanto, o que se notava era que a esmagadora maioria dos presentes estaria ali mais para assegurar um bom spot para quem vinha a seguir, os Foo Fighters, estrelas maiores de uma noite carregada de nuvens e de um ou outro chuvisco. Muita conversa entre as gentes e pouca atenção ao que no palco se ia fazendo. Percebe-se, também. Alisson Mosshart, no entanto, fazia bem o seu número de savage woman, não parando em palco quando prescindia da guitarra. “Heart of a Dog”, single do mais recente álbum, fez naturalmente parte do alinhamento, assim como a orelhuda “Baby Says”, entre bastantes outras. Foi apenas mais um concerto, tempo passado sem grande relevância. Concerto para indefectíveis? Há quem garanta que sim.

Às 23h10 começavam em palco os portugueses Bispo – que, tecnicamente, já estavam em palco desde as 21h55, em formato Modernos – que acabaram por ter a sorte de serem a única banda a tocar num dos três maiores palcos. Teclados brutos, bateria e direito a saxofone a aquecer para o concerto de Foo Fighters. Sobre esse, pouco há para dizer além das penosas duas horas e meia de um rock desinteressante e risível, durante as quais se ouviram êxitos atrás de êxitos – “Times Like These”, “Learn To Fly”, “The Pretender” ou “Everlong”, por exemplo – que a certa altura soavam todos ao mesmo. Em “La Dee Da”, Alison Mosshart subiu de novo palco para sorrisos, abraços e uns versos soltos ao microfone.
Com a noite bem subida nas horas, ainda houve tempo para espreitar Parov Stelar. Com pujantes secções rítmicas e de sopros, assim que se ouviram os primeiros sons, ninguém perdeu tempo e a dança foi imediata. Com tons de festa absoluta, o austríaco, que já gravou com nomes tão diferentes como Tony Bennett, Lady Gaga, Bryan Ferry e Lana del Rey, foi comandando as tropas em palco. Depois de muitas horas de festival, só mesmo os mais resistentes é que se aventuraram a dar às ancas como se não houvesse amanhã. E bem parecia que assim era, tal a maré de gente que resolveu virar costas ao rock do palco principal para se refugiar no festivo espaço Heineken.
A noite terminou com êxtase nos DJ sets de Mitsuhirato, Bandido$ (palco Clubbing) e Floating Points (palco Heineken). No primeiro, hits de indie rock deste e do outro século como “Let It Happen” (Tame Impala), “All My Friends” (LCD Soundsystem) ou “This Charming Man” (The Smiths), nas quais até o homem da cerveja se juntou à festa. Assim que entraram em palco os Bandido$, seguimos para o espectáculo a solo de Floating Points. Ao chegar, reconhecemos logo os teclados contidos de Elaenia, disco de 2015. Noite adentro, o músico e neurocientista irrompeu por um DJ set maquinal perfeito para final de segundo dia de festival, na qual manipulou partículas sonoras de forma a curar as bebedeiras que ainda se aguentavam (ou que ainda começavam).
Texto: Carlos Vila Maior Lopes e Francisco Marujo || Fotografia: Francisco Pereira e Luís Flôres