Se Um Homem na Cidade de Carlos do Carmo é o disco que melhor canta Lisboa e o Mutantes S.21 é um disco que pinta um fresco bastante aproximado da realidade de uma Europa suburbana, Illmatic, a obra-prima de Nas e do hip-hop nova-iorquino, é a crónica mais certeira de Nova Iorque suburbana pré-pós-moderna, antes de milhares de filmes e séries a terem transformado em zona não só habitável, mas até mesmo turisticamente atractiva.
Muitos anos antes das empresas de tecnologia ou do beef com Jay Z, Nasty Nas era um miúdo que andava pelos clubes de Nova Iorque a rapar e a impressionar a comunidade mais underground, recebendo mesmo comparações com o génio da métrica Rakim. Mas tudo mudou quando, a 23 de Maio de 1992 o seu parceiro nos pratos, o DJ Willy “Ill Will” Graham foi baleado. Não aplaudindo a morte de um jovem, a verdade é que não fosse este acontecimento e Nas poderia nunca ter conhecido DJ Premier, o homem que viria a ajudá-lo a conseguir a sonoridade crua de Illmatic. E é logo na crueza alicerçada de “N.Y. State of Mind” que testemunhamos a importância desta aliança.
“N.Y. State of Mind” é uma sequência onírica que nos leva, através de um beat repetitivo e viciante, à vida de um gangster que foge dos seus inimigos depois da pistola que carrega ter encravado. A quantidade de rimas por estrofe é absurda, mostrando Nas a razão para ser, a par de Rakim, um dos rappers com a melhor lírica do hip-hop. Mas não é só a lírica que seduz. O flow em stacatto, a atitude na entrega e, acima de tudo, aquela frase certeira que nos faz expirar de alívio por não a conseguirmos sentir na pele: “I never sleep, ‘cause sleep is the cousin of deaht”. A vida de gangster que Nas adoptara antes de se tornar rapper não permitia que pudesse dormir descansado, por medo de retaliações dos seus inimigos. 26 anos depois, pessoas com a mesma tez da do rapper têm de temer a polícia ou tipos que curtem mascarar-se de fantasmas. É que um encontro com estes pode significar o fim da linha.
Já na terceira canção do disco, “Life’s a Bitch”, o beat é muito menos asfixiante do que o primeiro, até porque na verdade é uma canção de vitória: Nas tinha conseguido chegar aos 20 anos. Esse sentimento de triunfo que pode parecer ter uma fasquia tremendamente baixa é sublinhado por um dos refrões mais reconhecíveis de todo o hip-hop: ““Life’s a bitch and then you die, that’s why we get high / ’cause you never know when you’re gonna go”.
A capa do disco, na qual aparece um jovem Nasir Jones já com o cenho cerrado, como se aos sete anos a vida lhe tivesse dado a provar todas as amarguras que não desejamos para os que amamos, era já um prenúncio do que iríamos encontrar neste conjunto de canções. Amigos que são assassinados por minudências (“my man was shot for a sheep coat”), a grande praga de crack que assolou Nova Iorque (“I lay puzzled as I backtrack to earlier times”) ou o medo da a morte estar sempre a espreitar ao virar da esquina (“Straight up, shit is real/ And any day could be your last in the jungle”).
Nas surge no hip-hop tarde o suficiente para se pôr em cima dos ombros de gigantes. Run-DMC, Public Enemy, N.W.A., Wu-Tang Clan ou Erik B. & Rakim tinham já desbravado o caminho para Illmatic se tornar uma das maiores jóias do hip-hop norte-americano. Nas apenas o levou mais longe, contribuindo com mais uns metros de altura que foram escalados pelos Notorious B.I.G., por Mos Def ou Kendrick Lamar.
E os ombros de Nas são largos o suficiente para aguentar o peso. Até porque sabemos que quando canta “The World Is Yours”, está na verdade a dar espaço para partilharem do mundo que a ele lhe pertence.
Quando foi editado, Illmatic só vendeu 330 mil cópias. Mas isso não o impediu de ser um dos discos mais edificantes de todo o hip-hop. Infelizmente, é o pináculo de toda a criação de Nas que, apesar de algumas canções incríveis pelo caminho, não conseguiu nunca repetir a qualidade atingida aqui.
Apesar de toda a produção pós-1994 não ser assim tão edificante, Illmatic seria mais do que suficiente para catapultar Nas para o Olimpo de rappers. O miúdo de Queensbridge tinha algo a declarar: um amor pelo rap, por ténis, por miúdas, mas também algo a relatar: a vida dura que tanto ele como os seus amigos viveram e os sonhos que acalentavam.