O artista portuense passa a sua carreira em revista em antecipação do concerto no Theatro Circo no dia 29 deste mês
Entre sessões de gravação, mudança de estúdio e Cru, a sua nova digressão a solo, Manel Cruz conseguiu encontrar tempo para dar uma entrevista ao Altamont, onde falou da sua vida, do seu novo livro e, claro, da sua música.
Reuniste os Pluto recentemente. Há disco novo no horizonte?
Tenho muitas músicas para gravar. Tenho músicas novas e antigas que nunca foram editadas. Algumas depois do Vida Nova, algumas anteriores. Eu estou sempre com vontade de gravar mas a verdade é que estou metido em muitas coisas. Estou com os Pluto, com os Ornatos, com os concertos a solo, mais filhos, casa, etc. Acabo por não ter muito tempo para gravar. E depois, como saí do STOP, fiquei sem sítio para trabalhar. E eu gosto de encontrar o momento para fazer as coisas. Acabei por decidir tocar ao vivo e mostrar assim as músicas novas sem ter essa ansiedade de ter que gravar. As coisas levam o seu tempo.
Quando é que decides se uma música é de Pluto ou de Ornatos ou de outro projeto? Como é que mudas o chip?
É uma pergunta engraçada, porque isso acontece. Há uma música que ando a tocar nos meus concertos a solo que eu acho que seria uma grande música para Ornatos. E mostrei-lhes a música, e começámos a brincar com ela. Eu tive sempre esta preocupação de nunca me esquecer para quem é que estou a compor. Ou seja, há um conceito, que não é muito balizado porque cada banda é composta por certos elementos que lhe dão essa sonoridade, e depois também há um género de composição que sinto que já tem a ver com a banda. Os Pluto têm uma coisa mais pura e dura e os Ornatos têm uma abordagem mais épica, mais melómana, estás a ver? Não quer dizer que seja estritamente assim. Se eu levasse uma música dos Pluto para os Ornatos, de certeza que aquilo iria soar a Ornatos numa certa medida. Eu tento encaixar as coisas no universo das bandas. Não obstante, depois posso tocá-las sozinho. Por exemplo, no meu concerto a solo estou a tocar a “Devagar”, que é uma música que eu compus para os Ornatos, mas que se presta muito bem para tocar na guitarra.

Hoje em dia há muitos herdeiros dos Ornatos. Qual é a tua relação com o teu passado musical e qual é que sentes que é o teu papel no panorama musical?
As coisas dividem-se e também vão mudando ao longo do tempo. Nós não somos sempre iguais, não temos sempre os mesmos objetivos. Há uma altura em que nós estamos com alguma necessidade de provar alguma coisa a nós mesmos ou aos outros, depois se calhar já não é provar a nós mesmos ou a ninguém, é simplesmente fazermos o nosso trabalho o melhor possível, apreciar o processo. Se calhar hoje em dia, por exemplo, ter mais consciência do meu papel, por exemplo, na parte das letras que, voluntariamente ou não, acaba sempre por ter esse papel social, passar uma mensagem, passar uma ideia, mexer com a nossa mente. Se calhar hoje em dia, eu acho que tenho um bocadinho mais essa consciência no sentido em que me apercebo da importância que, efetivamente, essas coisas têm numa sociedade. A arte muda mentalidades. Como eu costumo dizer, pode não fazer A diferença, mas faz diferença.
A cantiga é uma arma.
É mesmo! Eu duvidava um bocadinho disso, porque às vezes temos esta sensação de que se nós não fizermos uma diferença enorme, não fazemos diferença nenhuma. Fazemos uma diferença. Pequena, mas fazemos. Por sentir essa responsabilidade, ainda que não seja um peso, isso muda o meu objetivo quando escrevo letras. De repente eu penso assim, “Eu quero influenciar as pessoas”. Eu tenho essa oportunidade. Neste contexto em que o mundo está a passar, que tem muita coisa terrível, é fixe eu também pensar nisso e aproveitar este meio para contagiar as pessoas com esperança, elevar valores como o amor, a empatia, a amizade, valores esses que às vezes ficam demasiado amassados face a outros valores que são elevados na sociedade.
Agora a questão é menos “Se isto vai chegar às pessoas” e mais “Isto, chegando às pessoas, o que é que pode e deve ser feito?”.
Sim, é isso.
Já tocas há umas décadas. Queria-te perguntar se sentes que o teu público foi mudando ao longo dos anos e se ainda te surpreendes. A tua música é muito acarinhada por muita gente. Como é que isso te afeta?
Eu tenho filhos dos 15 até os 17 anos e percebo que a estética é algo que, de alguma maneira marca cisões num universo artístico, embora também haja muito revivalismo e as coisas bebam umas das outras, mas a estética acaba por marcar essas cisões e nota-se isso nas novas gerações, nas coisas que eles ouvem e deixam de ouvir. O Elvis era o rei do rock, mas já há outros reis do rock. No entanto, eu acho que a música é uma linguagem universal, que depois também depende muito de quem são os pais, e que tipo de abordagem é que tiveram na educação artística dos filhos, o que é que lhes mostraram, se as gerações são mais sujeitas às modas ou são mais livres para usufruir dos produtos artísticos independente de onde é que eles vêm. Há uma coisa em que eu acredito que é a parte da palavra. Eu não sinto que seja um músico num sentido académico, sinto-me mais artista no sentido de fazer pensar, de brincar com as coisas, divido-me em muitas áreas. A palavra comunica, pode passear melhor pelas gerações e de alguma maneira fazer passar mais despercebida a questão musical pura e dura e eu sinto isso porque nos meus concertos eu tenho quase dos 8 aos 80, tenho pessoal de 15, 20 anos como tenho pessoal de 60 que já me ouvia. Tenho sentido que, de alguma maneira, não é uma coisa de massas, mas dentro desse núcleo de gente que me ouve tenho uma faixa etária muito alargada, tenho sentido isso nos concertos, tanto tenho uma miudinha que vem ter comigo para pedir um autógrafo, como tenho os pais e até a avó se for preciso. É fixe!

Queria fazer uma pergunta um bocado inevitável. Relativamente ao Centro Comercial STOP, surpreendeu-te o que aconteceu ou se sentiste que era inevitável dado o que anda a acontecer no Porto?
Não me surpreendeu absolutamente nada. Eu estive lá como presidente da associação durante dois anos e meio. O STOP inicialmente era uma fantástica anarquia e durou enquanto podia durar assim e eu adorava que aquilo funcionasse assim. Chega uma altura que se começa a falar de segurança e as coisas têm que ser acauteladas, tem que se mudar alguma coisa. Quando uma pessoa tem que mudar alguma coisa, tem que se fazer concessões, é preciso perceber o que está a acontecer para se reivindicar. Não se pode reivindicar só porque sim. Isso acaba por ser um tiro no pé dos agentes da cultura quando estes se acham no direito de reivindicar alguma coisa só porque são artistas e porque é cultura. Eles têm os seus direitos mas têm que saber aquilo que estão a exigir para reivindicar aquilo que querem e o que acontece é que havia um profundo desconhecimento do que era o problema do STOP. Tratava-se de uma questão de segurança. A Câmara sempre comunicou connosco, estava um plano a acontecer. Para mim a ideia não era aquilo ser da Câmara, era aquilo continuar a ser do STOP e nesse caso a gente tem que pensar onde é que vai buscar o dinheiro, e essas coisas vão muito de trabalho, são precisos planos, arquitetos, engenheiros é preciso legalizar coisas. Tudo isso são concessões, a gente não pode só dizer “Isto é nosso” só porque sim. Na altura eu levei esse plano a cabo só que eu não estava a fazer aquilo só por mim e quando és Presidente de alguma coisa tens que garantir que estás a a representar bem as pessoas que as pessoas estão bem com aquilo que estás a representar. Eu nem sequer conseguia explicar às pessoas, porque também poucas apareciam nas assembleias e as que apareciam acho que não percebiam muito bem o que estava a ser feito. Eu para levar aquilo em frente tinha que o levar com a convicção que estava a fazer a coisa certa porque eu não tinha esse espelho nas pessoas, não tinha a noção dessa representatividade e a dada altura eu cansei-me disso. Deixei as coisas no ponto em que estavam, entreguei a pasta, expliquei tudo o que tinha sido feito e disse “Agora sigam vocês” e esse plano não foi para a frente, ninguém fez mais nada. Claro que é frustrante morrer na praia mas eu não ia fazer aquilo só porque achava que aquilo ia funcionar e que ia ser bom, para depois as pessoas dizerem que podia ter sido de outra maneira e eu ainda ficar mal visto. Andaste ali a dar o corpo sem ganhar nada a fazer aquilo que achavas melhor e as pessoas que estiveram adormecidas ainda dizem que podia ter sido de outra maneira? Não quis correr esse risco, então deixei as coisas feitas até ali. Agora aquilo está como está, fiquei tão zangado que tirei de lá o estúdio e fui-me embora. Tive muita pena porque acho que se perdeu uma oportunidade. As pessoas têm um bocado a ideia de ser contra o sistema e não se apercebem que estão sempre dentro do sistema. A questão é se tu vais melhorar o sistema ou não. A oportunidade de operar dentro do sistema dá muito trabalho e a questão é mudar o sistema não é ser contra o sistema. Nós tinhamos a faca e o queijo na mão porque o STOP tinha muita credibilidade, tinha muita resiliência, tinha poder efetivamente, nós podíamos negociar com o dito sistema de forma a que o negócio fosse bom para nós. Mas é preciso negociar com o sistema. Todos nós queremos segurança, saúde, educação, que as coisas funcionem bem. Para as coisas funcionarem bem tem que haver organização. Perdeu-se a oportunidade de dar um grande exemplo à sociedade de como se pode fazer as coisas de outra maneira, porque estes fenómenos não acontecem muitas vezes. Foi uma tristeza muito grande, fiquei deprimido durante um tempo porque era uma coisa mesmo linda chegarmos àquilo que eu sempre ambicionei, que é pôr o sistema ao serviço das pessoas.

Andaste a publicar uns poemas e fragmentos no Instagram. Ouvi dizer que vem aí um livro. Podes dizer alguma coisa sobre isso ou ainda está no ar?
Eu compilei esses poemas todos e cheguei a escolher quais vão entrar no livro, só que comigo as coisas são muito lentas porque eu divido-me imenso. Eu já fui mais obcecado pelo trabalho, no sentido de prejudicar a minha vida pessoal por causa do trabalho. Mas se tu queres ser uma pessoa que se preocupa com a tua família, os teus pais, os teus filhos, os teus amigos e ter as tuas coisas em ordem e ser autossuficiente, o tempo é limitado. Quando és uma pessoa normal não podes ter uma mega carreira de produção. Eu percebo aquela ideia da arte acima de tudo, mas vi tantas histórias de artistas que foram miseráveis a vida toda e não tinham amigos. Morriam pela arte e eu não quero morrer pela arte, eu quero que a arte me dê vida e apercebo-me que vou fazendo escolhas todos os dias e o resultado é que o processo é lento. Não faço as coisas com a rapidez que queria mas o livro já esteve muito mais longe, já tenho os poemas já estou a escolher quais é que quero. O meu objetivo neste momento, é não ter ansiedade, o que já não é fácil [risos].
Queria também perguntar-te sobre o Cru. É uma nova modalidade da tua carreira?
Eu acho que é mesmo uma nova parte da minha carreira, algo que pretendo sempre manter. Primeiro porque eu faço músicas especificamente para ali mas é também um sítio onde vou tocar coisas que vou fazendo noutros sítios. Aquilo é o Manel na música. A parte das bandas tem a ver com aquilo que me fez começar na música, que tem a ver com a partilha da música com outras pessoas e é uma componente da minha música que eu faço porque quero mesmo fazer, ou seja, eu quero que a música continue a ter esse papel na minha vida. Se calhar já não precisava, no sentido em que eu podia investir mais na minha cena a solo, e a minha cena a solo é uma coisa que eu, para além de gostar, preciso de fazer, porque é um trabalho e é esse o meu emprego, mas aquilo que me ligou à música e ao tocar ao vivo tem mais a ver com essa vibração com os outros. É uma parte que eu faço questão que se mantenha na minha vida, uma parte que eu nunca imaginei que existisse e que a dada altura se tornou mais aliciante no sentido que é um projeto que é mais barato, sou eu e uma equipa pequenina posso ir aqui, posso ir acolá e de aprender a gostar disso, criar uma forma de o fazer que me dê prazer e que seja um emprego que eu gosto. O que me dava nervosismo e ansiedade em tocar sozinho neste momento é um prazer. Esse desafio, essa fragilidade, essa tensão que existe e essa energia que se cria com o público é algo que me dá vida. É algo que encaixou na minha vida em vários sentidos: no sentido profissional, no sentido pessoal, de eu me desafiar fazer a uma coisa que envolve mais a minha pessoa do que propriamente a minha música só.
Isso suscitou em mim uma pergunta, sobre nervosismo. Se calhar, nesta altura do campeonato já não sentias muitos nervos antes de entrar em palco, pelo menos com as bandas. Sentiste-te nervoso das primeiras vezes que tocaste sozinho?
Sim, e nas bandas também sinto, há sempre um nervosismo, uma ansiedade. É estranho porque sabes que vai correr sempre bem, é sempre competente porque dás sempre o teu melhor, mas parece que há sempre hipóteses de meter o pé na poça e aquilo ser uma vergonha. Há sempre um sentimento de que é hoje que vais inventar aquilo, há sempre essa tensão. Nos concertos a solo havia uma vertigem muito maior, principalmente no início, porque eu tentava reproduzir a força da música com as bandas sozinho, sem exército. Tentava tocar aquilo forte, cantar mais forte até perceber que a força daquilo não era a mesma, a força estava na fragilidade de tu tocares baixinho, levares o teu tempo. Não vais levar as pessoas, as pessoas é que vão atrás de ti. Se tocares mais alto aquilo vai soar mais fraco e mais pobre e se tu tocares aquilo baixinho e tu sentires que aquilo é pequenino e íntimo vai ter uma força tremenda. Essa fragilidade tem uma força específica e comecei a perceber que não precisava de me munir de nada, aquilo já tinha a força que tem.
O baixista Victor Wooten disse uma vez num livro dele que se queres que as pessoas te ouçam, toca mais baixo e há muita verdade nisso.
É isso! Eu dizia isso mesmo nas bandas às vezes, havia aquela coisa de tocar com força e tocar alto e era uma coisa que eu fazia às vezes impressão. Tem a ver com a diferença entre a força e a assertividade. Quando uma coisa é assertiva é forte, mas quando uma coisa é alta pode não ser forte, pode ser só vazia, agressiva mas sem conter essa força. A força vem de outros sítios.

Há novidades ou algo que queiras anunciar para as pessoas?
As novidades são essas, ando com vontade de gravar músicas, esta semana vou fazer mais uma sessãozinha de gravação, existe também a ideia de fazer o livro, que pretendo que seja o mais breve possível, sendo que este ano eu também estou finalmente a comprar casa. Estou envolvido em muitas coisas. Estou a planear para o ano já ter o estúdio montado. O confinamento deu-me isso de começar a pensar nas coisas com mais paciência e mais a longo prazo. É como um xadrez não dás um salto com o peão para comer o rei, tens que ir jogando, há uma cadência, há tempo para as coisas. Acho que as novas gerações têm um attention span mais curto. Há uma ansiedade para ver as coisas prontas e lançar coisas rápido. Calma, vocês têm mais esperança média de vida [risos] não têm de ter mais pressa, têm de ter menos, vocês vão viver mais! Há tempo, quando as coisas saem, é essa a melhor a altura para elas saírem.

Fotografias por Ana Lúcia Tiago