Disclaimer: Isto não é uma análise a um disco, isto é admiração sem vergonha e uma declaração de amor platónico e restos de adolescência que bate palmas a cada música de Manuel Cruz. Isto são palavras sem imparcialidade, porque há artistas que nos tiram o chão, nos vasculham a alma e nos atiram ao ar para nos agarrarem de novo no momento da queda.
Foi longo o caminho que te levou até aqui, Manel. Ornatos Violeta, Supernada, Pluto e Foge Foge Bandido, em todos a tua voz criativa criando músicas incontornáveis para tantos. Com os Ornatos criaste para a banda um estatuto de culto. Com Foge Foge Bandido fizeste levantar sobrancelhas com a amálgama de experimentação e instrumentos.
Demoraste, Manel, o tempo que tiveste de demorar apesar das ansiedades de todos os que olham para ti e esperam, todos os anos de silêncio, que escrevas e cantes, que te mostres e ao mostrar-te reveles aquilo que nos vai na alma e nem sabíamos como dizer. Este disco a solo é o culminar de muitos anos de espera para quem, como eu, não se conforma com o fim dos Ornatos e foi bebendo sofregamente cada faixa que ia aparecendo, a espaços, antecipando o que aí vinha.
“Beija-Flor” mas, sobretudo, “Ainda Não Acabei” (que canção crua, que letra fantástica, que ritmo soberbo, 1:50 de intensidade) rodou sem parar enquanto o álbum tardava em sair. E depois, “O Navio Dela”, esse hino à mulher independente (tão na moda), que é entre a declaração de amor e o irónico, já muito perto do disco estar cá fora, a aguçar a curiosidade, a fazer riscar os dias no calendário.
Confesso, a dúvida instalou-se, Manel. Um disco em ukelele podia ser apenas duas coisas: uma reminiscência do havaiano de Somewhere Over the Rainbow ou o Eddie Vedder quando não lhe apetece dar concertos a sério. Ukelele porquê, Manel, se em Foge Foge Bandido experimentaste com tantos instrumentos?
Depois, a surpresa: ukelele, banjo e teclado a teu cargo e surges bem acompanhado de Nico Tricot (voz, flauta transversal, teclados, guitarra), Edú Silva (voz, baixo, teclados) e António Serginho (percussão, teclados). E que delícia de disco, Manel.
E que recompensa pela espera, Manel. Eu, parcial, me confesso – tanto esperei por um disco teu que não sei se o conseguiria achar, em algum momento, irrelevante ou menos que muito bom. Mas não é o caso, Manel. A rodar sem parar nos meus auscultadores, as letras já meio decoradas, as tuas palavras a fugir das rimas óbvias, enquadradas no que é o interior perdido de cada um, os ritmos simples e a produção sossegada, de onde sai apenas a beleza das canções.
A começar logo por “Como um Bom Filho do Vento”, onde procuras “reconstruir a memória”, como se estivesses a lembrar-te do como é voltar a gravar. A simplicidade do ukelele, afinal, não é preguiçosa, como eu temia e logo na segunda, “Anjo Incrível”, há tanto de Ornatos que fui transportada até “Cão”.
“Caso Arrumado” é um caso sério de enamoramento por uma canção (“nada só leva a nada, pois um caso perdido é um caso arrumado”, a maior verdade e da qual muitas vezes nos esquecemos, obrigada por o cantares, Manel) mas as minhas preferências continuam a ir para a soberba “Ainda não acabei”, do início ao fim, da letra à composição à produção. E de repente acalmas, com “O Céu Aqui,” uma balada tranquila e doce.
Ao longo das 12 faixas do disco, que imaginamos compostas com sangue, suor, e lágrimas – porque quem canta o que escreves e da forma cantas não pode compor de outra forma, é óbvio – nada é fácil nem banal, nem nas rimas nem na composição. São canções humanas, sofridas, melancólicas e às vezes resignadas. Desafio-vos a ouvirem todo o disco sem se reverem em, pelo menos, uma frase ou um desabafo. O disco, aliás, vai crescendo, como nós crescemos, para culminar com, depois da melancolia de “Onde Estou Eu”, em “Vida Nova”, dedilhado alegre, pequeno piano, quase um corridinho, quase uma lengalenga, Manel despido, “sai o animal à rua, que vergonha, traz a alma toda nua”.
As letras crescem, o disco evolui, ganha densidade, ganha corpo dentro da simplicidade da produção a cada nova audição. Cada surpresa em cada letra, em cada frase que significa diferente consoante o estado de espírito em que a ouvimos.
Manel, as tuas dores de crescimento e as tuas angústias são as de todos nós. Em entrevista ao Expresso disseste: “um gajo nasce e morre puto. Por mais que aprendas a defender-te, uma vida é muito pouco tempo para te tornares adulto”. Terminas o disco irremediavelmente fatalista: “são as vidas a ferver e então tens a tua para viver”. Como te entendemos, Manel.