Há várias formas de se falar da Lana del Rey. Podemos insistir na discussão se a moça é genuína ou se tudo nela é encenado. Do sorriso envergonhado ao afastar da madeixa solta de cabelo. Se fez uma plástica ou pôs botox nos lábios. Se é envergonhada e não sabe lidar com a sua sensualidade e o seu sucesso ou se é uma mulher fatal e misteriosa. Ou ainda se é tudo isto e se tudo isto faz parte de uma qualquer máscara de estrela pop-rock que diz em entrevistas que já queria estar morta mas depois se arrepende. No twitter, claro.
Para mim não passam de capítulos de um folhetim das redes sociais. A novela dos hipsters ou lá o que é essa coisa do rótulos nas pessoas e nos estilos.
Depois podemos ainda falar do que ela defende ou aparenta defender. Será que ter uma canção sobre violência doméstica – a própria da “Ultraviolence” onde canta “he hit me and felt like a kiss” – significa que Lana Del Rey aprova esse tipo de relação. Será que para ela uma relação tem de ser entre uma mulher semi submissa e um homem cool mas violento. Ou será que afinal apoia a ideia da mulher de armas, que faz, que é independente, que é senhora de si como muitas das suas inspirações musicais. Por exemplo, em “Cruel World” canta “I share my body and my mind with you, that’s all over now (…) I’m finally happy now that you’re gone”.
O mundo da música já teve esta discussão vezes e vezes sem conta. Com os Led Zeppelin, os Stone Temple Pilots, os Guns n’ Roses…
Como artista, Lana del Rey pode ser o que quiser. E ela sabe-o. Em 2009, disse numa entrevista ao Huffigton Post: “A minha fantasia é a minha realidade”. Dava para analisar isto filosoficamente e continuar a alimentar o folhetim, mas prefiro concentrar-me na música.
E nesse aspecto, Ultraviolence é um grande álbum. Um dos melhores do “meu” ano. “West Coast”, “Cruel World” e “Ultraviolence” são canções quase intemporais. Para já, no meu espaço contínuo. No mundo em geral duvido que alguma vez sejam ou que sequer tenham o impacto dos temas que trouxeram Lana del Rey ao mundo: “Video Games”, “Born to Die” ou até “Blue Jeans”. Falta-lhes o aparato cénico.
Em Ultraviolence, Lana del Rey mergulhou na melancolia. No sonho. Meteu-se no carro e seguiu sem destino. Largou os traços mínimos de hip hop do primeiro álbum Born to Die – e onde estavam todas essas canções marcantes – e concentrou-se na dream pop, no jazz vocal, nas mulheres independentes mas delicadas como a Nancy Sinatra (“Shades of Cool”, “Brooklyn Baby”), Kate Bush (“Fucked My Way up to the Top”) ou Julee Cruise*. Entrou no universo musical e cénico dos Shivaree e da sensual Ambrosia Parsley, de Florence and the Machine ou Lykee Li, e ainda de David Lynch ou Wim Wenders. Reforçou o que já tinha começado a explorar em Paradise (o álbum que lançou numa edição especial de Born to Die) e fez canções que criam ambientes, que nos levam a lugares estranhos e ermos onde o sol queima e arrepanha a pele. Canções que nos levam numa viagem por uma estrada sem fim pelo meio do deserto.
Claro que continuamos nos EUA – talvez mais profundos que anteriormente – mas os símbolos que Lana del Rey usou no primeiro álbum quase desapareceram. O guarda roupa e o cabelo são menos elaborados e menos presos a um estilo. A sensualidade e a sexualidade fluem de forma mais natural, porque na verdade a mulher que é Lana del Rey é sensual e sexual (sim, são coisas diferentes!). E há mais liberdade. Nela e na música. Há, aliás, mais música, mais cuidado com os arranjos, uma maior conjugação de instrumentos, mais variantes da guitarra, da bateria e da voz.
“Cruel World”, o tema de arranque, mostra-nos logo isso. É uma espécie de balada shoegaze dos tempos modernos, com mais de seis minutos de uma guitarra arranhada e arrastada que de vez em quando surge em curtos loops psicadélicos a que junta a voz de Lana como que acabada de sair da cama, de ressaca. Por momentos até pensamos que a Lana del Rey mudou de estilo, mas o tema seguinte, “Ultraviolence” – o que dá o nome ao álbum – traz de volta a voz delicada e sensual e a batida orquestral a que nos habitou em “Video Games” ou “Born to Die”. Mas há lá atrás uma guitarra a lançar loops.
“West Coast” volta a ser inesperado dentro do universo Lana Del Rey. A canção começa com uma batida compassada em constante repeat, quase como um disco riscado, depois aparece uma guitarra semi acústica também em loop e pelo meio trocam-nos as voltas com um refrão delicodoce. E é o tema do álbum.
Mas o disco não acaba aqui. Posso ainda destacar a sensual “Sad Girl” onde se nota bem a guitarra blues rock de Dan Auerbach, dos Black Keys, que não só produziu o álbum como tocou guitarra em vários temas. Ou a versão jazzy e algo saudosista de “The Other Woman”, uma canção que já foi interpretada por Nina Simone e Jeff Buckley, mas que foi escrita por Jessie Mae Robinson, compositora negra dos anos 50 que escreveu para Wanda Jackson ou Elvis. E a influência dos anos 50 volta a marcar presença nas escolhas de Lana Del Rey.
E já agora, destaco ainda um dos temas da Deluxe Edition, que traz mais três canções, uma delas “Florida Kilos”, uma espécie de canção de cabaret muito suspirada e quase triste. Porque a pop, seja de tipo for, não é só espalhafato e fogo de artifício. Ela também pode ser triste, decadente, densa e instrospectiva. Sem ser lamechas.
Claro que podem considerá-lo aborrecido. Eu cá vejo uma evolução daquilo que é a pop ou a indie pop da Lana Del Rey. Vejo-a entrar mais no universo do rock. Vejo mais consistência, mais naturalidade e menos fogo de artifício. Vejo mais trabalho de bastidores. E isso não tem nada de encenado.
*Para quem não conhece, a Julee Cruise foi a voz que deu corpo às composições de David Lynch e Angelo Badalamenti na série Twin Peeks.