Há muito que suspeitava que este dia haveria de chegar. Estou certo que somos todos feitos de algumas incongruências, e nada mais há a fazer a não ser aceitá-las. Este é apenas mais um exemplo do que acontece comigo desde sempre: sou pouco cinéfilo, mas nessa pouca quantidade sou completamente obcecado por Truffaut, Godard, Fellini, Resnais, Rohmer, Buñuel e outros grandes cineastas, sobretudo por ostentarem uma visão mais cerebral do mundo, não buscando apenas o caminho do entretenimento como forma de fazer cinema. No entanto, e desde muito miúdo, sinto um enorme fascínio pelos filmes de James Bond! Compreender estes interesses tão díspares numa só pessoa (e essa pessoa sou eu, bem entendido) é tarefa que já não me ocupa o pensamento, tal a impossibilidade de chegar a conclusões que me convençam. Como este site é de música e não de cinema, resolvi alinhavar algumas palavras sobre a banda sonora daquele que é, para mim, o filme que mais gosto de todos os 007. Refiro-me a On Her Majesty’s Secret Service, estreado em 1969, e que é, ainda hoje, um dos registos mais psicologicamente densos de toda a série.
Mais uma vez, como em tantas outras ocasiões ao longo de décadas, foi John Barry que se responsabilizou pela banda sonora do filme. É também bom lembrar que a inclusão de “We Have All The Time In The World” faz toda a diferença entre esta gravação e todas as outras dos filmes de James Bond, mas julgar todo o registo apenas por essa aparição, é uma injustiça que não vou cometer. Vamos por partes, então.
Deixemos para o fim a canção já mencionada. A parte instrumental desta banda sonora é poderosa, e bem capaz de vida própria sem as imagens que na tela vão passando ao longo do filme. “This Never Happened To The Other Feller”, que começa por incorporar um tema bem conhecido da série, leva o ouvinte a um tal patamar de tensão, lá mais para o final dos seus cinco minutos, que não deixamos de sentir algum alívio, quando surge “Try”, doce e romântica nos arranjos, espaço de respiração oportuna para o ouvinte, que volta a ser quebrado instantes depois com “Ski Chase”, belíssima e épica como poucos outros momentos de todo o disco. Coisa rara, e por isso digna de sublinhado, é o facto de este On Her Majesty’s Secret Service contar com duas canções cantadas, e não apenas uma, como sempre aconteceu (se não me falha a memoria) em todos os outros filmes da série. Sem entusiasmar, “Do You Know How Christmas Trees Are Grown” surge cantada por Nina Van Pallandt, uma dinamarquesa de voz pouco marcante, mas bem próxima de um certo estilo da época. A versão instrumental de “We Have All The Time In The World” é deliciosa, lânguida e insinuante, impondo-se de maneira sublime na totalidade da sua duração. Mais violinos e cordas angelicais em “Over And Out”, até chegarmos a outro momento de tensão, embora mais doseada e não tão marcante como algumas passagens anteriores, que é “Battle At Piz Gloria”. Muitos destes temas são povoados de linhas melódicas que se mantêm por todo o disco, o que dá uma forte noção de unidade a toda a obra.
Voltemos à canção “We Have All The Time In The World”, momento maior de toda a banda sonora. Para além da curiosidade de aparecer apenas quando o filme já avançou cerca de trinta e cinco minutos (coisa pouco vista, mas não inédita, uma vez que as canções tema surgem quase sempre no início de cada filme), outra há que não deixa de ser infeliz: “We Have All The Time In The World” foi a última canção gravada pelo enorme Louis Armstrong, que viria a falecer dois anos depois, vítima de uma ataque cardíaco. O tema em questão é mundialmente conhecido, e a interpretação do bom velho Satchmo tem um certo grão de tristeza que facilmente emociona o ouvinte mais atento. Na altura em que foi gravada, Louis Armstrong já não conseguia ter forças para tocar a sua mítica trompete… Tudo tem um fim, na verdade. Nos últimos instantes do filme, bem como nas últimas linhas do romance de Ian Fleming, a mulher de James Bond diz uma derradeira frase antes de morrer, que é nada mais, nada menos que o título da canção. Talvez seja também este exemplo de trágica ironia (a frase é tão assustadoramente enganadora e verdadeira!) que me faz gostar mais deste filme do que de qualquer outro da série do famoso agente secreto do MI-6. Em relação à banda sonora, ela é tão bela e tão marcante, que qualquer audição poderá validar as ideias aqui apresentadas, e acrescentar outras. Muitas outras, seguramente.