Caso seriíssimo de talento e imaginação, os King Gizzard & The Lizard Wizard, são sete rapazes australianos, que editaram em 2012 o primeiro disco, e desde então, têm lançado dois discos por ano. Chegam, por isso, ao fim de 2015 com um total de 7 álbuns e 2 EPs. E pode dizer-se que eles são os legítimos herdeiros dos Doors. Não é por causa do nome, embora pisquem o olho ao Rei Lagarto, mas há ali alguns aspectos na música dos Gizzard que faz deles os verdadeiros carregadores dessa chama, principalmente a harmónica à “la blues” e as teias de bateria e baixo pulsante a nortear toda a restante criação.
Estes garotos também foram buscar para o nome Lagarto e Feiticeiro. E, embora digam que isso aconteceu um bocado aleatoriamente, acaba por encaixar que nem uma luva. Feitiçaria, que cada música é preparada num caldeirão com os mais impensáveis ingredientes, incluindo sangue de galo e dentes humanos. E o lagarto pode ser um camaleão, que em apenas três anos já assumiu inúmeras cores e formas. Não que estejam sempre a mudar de estilo como quem não sabe o que quer, mas de forma natural vão metendo o dedo em variadas estéticas, vão experimentando coisas diferentes, a cada disco vão acrescentando elementos dos anteriores, sub-repticiamente, e acabam por já ter uma linguagem muito própria.
Depois de passar por um rock mais psicadélico, temperado com kraut, abraçaram o blues, em Quarters! cheiraram um pouco de jazz e, em Paper Mâché Dream Balloon, atiraram-se a uma certa folk pastoral. Mas com uma sensibilidade pop extremamente apurada, cada canção é um single pronto a passar em qualquer rádio.
O primeiro disco deste ano, Quarters!, é feito de quatro canções de dez minutos, muito mais dadas ao improviso deambulante. Paper Mâché é um trabalho mais convencional no formato, 12 canções de 3 minutos, verso, verso, refrão, etc, mas isso acaba por surpreender, tendo em conta o historial da banda.
Neste disco quase não se ouve a guitarra eléctrica e a acústica é frequentemente acompanhada pela flauta. Pouco habitual no rock pop de hoje em dia, tal como pouco frequente nestas andanças é a harmónica, mas são instrumentos fulcrais na música dos King Gizzard. Não estamos à espera de ouvir tais sopros, mas eles entram com uma tal naturalidade e suavidade, tornam as canções ainda mais melódicas, ao mesmo tempo que emprestam às canções de Paper Mâché um imaginário quase medieval.
Mas o caldeirão dos Gizzard mistura muitas mais inspirações. No tema de abertura, “Sense”, há um clarinete e piano de cauda a levar-nos para um cabaret fumarento. Os seguintes, “Bone”, “Dirt” e “Paper Mâché Dream Balloon” lembram hippies folk. Como qualquer bom hippie de sessentas, aqui também se pisca o olho à Índia – “Cold Cadaver”, “N.G.R.I. (Bloodstain)” ou “Time=Fate” têm pitadas de sitar, mas não demasiado hipnótica. O blues à la Doors está presente em “Bitter Boogie”. E para fechar o disco, um medley instrumental, em que a flauta canta os refrões de vários temas do disco.
E chegamos ao fim do álbum com sorriso. Paper Mâché Dream Balloon é o disco mais suave destes rapazes. É leve sem ser simplista, é luminoso e jovial, é uma colecção de singles, certeiros tiros pop cheios de cor e incrivelmente bem tocados, e é também o disco mais diferente na carreira da banda, com canções curtas e fechadas em si mesmas.
Paper Mâché vem compor uma já bastante rica discografia, de uma das bandas que devemos seguir com a maior atenção nos próximos tempos. Os King Gizzard ainda são relativamente desconhecidos, mas inteligentemente não correm atrás dessa fama rápida. Estão a trilhar um caminho prudente, cheios de energia e inspiração mas com as ventosas bem assentes na terra, a construir uma identidade camaleónica mas coerente. E sem dúvida vão chegar bem longe. Mesmo se não chegarem, já deixaram marca no grande livro da história da música.