O ano zero do prog-rock tem uma data: 1969. Os King Crimson chegam-se à frente de todos e editam o primeiro clássico absoluto do género. Sem grande pomposidade, sem grande alarido. Um murro no estômago.
Se 1977 é o considerado “o ano zero” do punk, então pela mesma ordem de ideias, 1969, marca o início do rock progressivo. Na ressaca do psicadelismo, diversas bandas com vontade de quebrar a regra dos 3 minutos por canção, começam a praticar um som mais “arty”, mais cerebral, que fundia os melhores horizontes da herança jazz deixada por Miles e Coltrane; o clássico barroco de Bach e Stravinsky; a folk subversiva de Dylan; o experimentalismo de Varese e o “caldeirão mágico sonoro” nascido do rock espacial dos Pink Floyd de Syd Barrett.
A fronteira entre os diversos estilos era ténue e o trio Giles, Giles & Fripp, com seu disco homónimo de 1968 já dava sinais de mandar às urtigas todos os cânones musicais instituídos. Mas é só uns meses depois com a formação dos King Crimson (sinónimo de Belzebu, “príncipe dos demónios”, segundo o letrista Peter Sinfield) que “a máquina” começa a lançar o seu espectro na cena musical britânica.
Liderados pelo sempre “inconformado musical”, o guitarrista Robert Fripp, os Crimson revelavam ser os impulsionadores de uma nova forma de estar no mundo musical: a intelectualidade ligada à experimentalidade. Aqui não há facilidade ou descanso para os ouvidos. As mudanças de tempo são rápidas; as instrumentalizações são imaculadamente arquitectadas e os temas abordados são tão enigmáticos como os escritos de James Joyce ou J. R. R. Tolkien.
“21st Century Schizoid Man” é tão válido hoje como há 50 anos. Uma entrada fulgurante ”da secção” de sopro acompanhado de uma guitarra distorcida e a voz perturbante de Greg Lake (o melhor vocalista que eles alguma vez tiveram) causam um impacto do que é impossível escapar. “Cat’s Foot Iron Claw/ Neuro Surgeons Scream more/ at Paranoia’s Poison door…21st Century Schizoid Man”.
Estava feita a primeira abordagem do pop/rock ao stress que o “homem moderno” (retratado na capa do álbum) tem de se sujeitar para habitar num mundo cada vez mais dependente da tecnologia das máquinas. Soa-vos familiar em 2019?
Este tema “esquizoide” continua por mais sete minutos, carregando-nos para uma jam instrumental para lá dos confins das fronteiras musicais pré-estabelecidas entre o jazz e o rock.
Mais calmo, “I Talk to the Wind”, serve para tomar o fôlego das emoções da “bomba” anterior. Contem com um delicioso mellotron da autoria de Ian McDonald, a reproduzir flautas delicodoces que nos chamam para um imenso bosque encantado, onde o tal “homem” à beira de um ataque de esquizofrenia supostamente fala com o vento: ”You Don´t Pocess me /Don´t impress me/ Just Upset My Mind/ Cant instruct me or conduct me just use up my time…”.
“Epitaph” traz-nos de rompante o tom sinfónico e majestoso” com uma entrada digna de um compositor da era clássica. Da estrutura melódica sobressai Greg Lake, que daqui retirou muitos ensinamentos que lhe serviriam mais tarde para as suas composições folk dos Emerson, Lake & Palmer e que o tornariam mundialmente famoso.
“Moonchild” por seu turno é a balada mais discreta possível. Apenas uma guitarra e um Mellotron saídos da banda sonora de um filme de Ingmar Bergman conseguem acompanhar a voz angélica de Lake: ”She´s a Moonchild…Dancing in the Shallows of a River…Lonely Moonchild Dreaming in the Shadow of a Willow”. Foi o máximo que o cerebral Robert Fripp se aproximou de uma balada romântica.
A fechar, o carácter épico volta a ganhar forma. Não espantaria ninguém se víssemos uma orquestra dedicada à obra de Stravinsky interpretar um tema que narra o “Regresso da Bruxa do Fogo na corte do Rei Carmesim”. Uma obra que vai crescendo em força, à medida que também vai aumentando o poder da história sobre o ouvinte. No fundo, um final épico onde fica um saborzinho picante aos ambientes fantásticos da “Terra Média” ou das “Crónicas de Nárnia”.
Apesar desta estreia auspiciosa, (nº5 na tabela do top inglês e mega concerto de abertura para os Rolling Stones em Hyde Park) os King Crimson não voltariam a soar da mesma forma. Mudanças constantes na sua formação não trouxeram jamais a estabilidade ou a inocência de In The Court mas em compensação trouxeram outras abordagens à eterna busca pela experimentação. Os discos seguintes foram ficando mais virados para o “controlo remoto” instrumental de Fripp, que ao longo dos anos se assumiria cada vez mais como o grande coordenador da “Corte”. Nunca conformado com um só estilo, ou amarrado a uma única só fórmula de fazer música. Para sempre progressivo…