No abrir da década de setenta, Linda Perhacs lançou um maravilhoso álbum de psych-folk que ninguém ouviu, Parallelograms. Entretanto lançou mais dois, já no século XXI, depois de ser descoberta aos poucos ao longo de um período de quatro décadas. Esta é a sua história, a de uma simples dentista de Beverly Hills que fazia música nos tempos livres.
Quando a década de sessenta chegou ao seu final, o mundo tinha acabado num caldeirão efervescente de fantásticas novas ideias e visões para a música folk da América de cima. Dylan, Mitchell e Buckley, entre muitos outros, escreviam na lápide dos últimos dez anos formas revolucionárias e eternamente empolgantes de tocar guitarra e cantar poesia. É difícil precisar, mas seriam decerto às centenas, talvez aos milhares (quiçá aos milhões?) miúdos e miúdas de cabelos compridos por todo o lado que pegaram nas suas guitarras e canetas, consumidos pela vontade furiosa de também eles virem a ser o próximo Dylan, Mitchell e Buckley. De serem ouvidos, acarinhados e celebrados durante décadas vindouras.
Quem não teria tempo para este género de sonho enebriado e, para muitos, incompatível com o mundo real era Linda Perhacs, na altura uma jovem dentista recém-chegada a um consultório em Beverly Hills.
Linda Perhacs nascera no primeiro dia de dezembro de 1943 no Mill Valley, na Califórnia. Viveu uma infância e adolescência certinhas, sendo com certeza uma aluna de mediana a exemplar, qualidade que lhe permitiu formar-se em Medicina Dentária na Universidade da Califórnia. No início da década que viria a desembrulhar como presentes para os melómanos os tais discos maravilhosos que levariam tantos miúdos a querer repeti-los pelas suas vozes e mãos vezes sem conta, mudou-se para um chique consultório em Beverly Hills onde passava os dias a limpar dentes a vedetas de Hollywood. Casou-se. Linda Perhacs teria pouco ou nenhum tempo para se entreter com delírios de estrelato musical (sabe-se lá se teria sequer tempo para pousar a agulha no vinil mais do que uma vez por semana). Mas sempre escrevera músicas pela calada.
Começou a escrevê-las com cada vez mais vontade e regularidade, sempre que encontrava um momento sozinha sentada ao balcão da cozinha de casa, depois de regressar dos seus turnos diários: sempre fora uma criança musical, com gosto pela melodia e pela lírica, mas nunca se entregara nem a cinquenta por cento à música, que nunca fora para ela mais do que um discreto passatempo, como quem gosta de fazer as palavras cruzadas na praia. Mas, certo dia, um dos seus famosos clientes favoritos, Leonard Rosenman (homem por detrás das bandas-sonoras de filmes como Barry Lyndon, A Leste do Paraíso ou Fúria de Viver) perguntou à simpática dentista, em amena cavaqueira, se tinha algum hobby. Perhacs explicou que gostava de tocar guitarra e cantar. Na altura, o seu casamento dava-lhe algumas dores de cabeça, e explicou-lhe que, recentemente, se tornara uma espécie de refúgio “só para ter algo para fazer sozinha”. Quando Rosenman regressou para uma limpeza, Perhacs passou-lhe, a pedido seu, uma cassete sua. Dentro de semanas, fizera-lhe assinar um contrato com a Universal para lançar o seu disco de estreia (o mercado morria de sede por uma nova Joni Mitchell, portanto, quando Rosenman lhes apresentou a uma miúda de cabelos compridos, vozinha aguda afinada sem esforço e habilidade na guitarra, adoraram-na).
O esdrúxulo álbum de nome Parallelograms foi lançado em 1970. Rosenman acompanhou a nova amiga em todos os capítulos do processo e todas as sessões de estúdio, observando-a com o entusiasmo de quem vê nascer uma estrela. Perhacs escreve, lírica e melodicamente, como nenhum dos seus contemporâneos, revelando-se um bicho raro num mundo recheado de imitadores da santa trindade enumerada no início deste artigo. Para um artista conseguir, ao primeiro disco de todos, gabar uma panóplia de cores refrescantes que ilustram o mapa para um mundo musical completamente seu, teria de possuir algo de especial. Rosenman localizara, com o seu faro apurado, esse brilho em Perhacs, que ofusca o ouvinte ao longo dos quarenta minutos que fazem Parallelograms, cheio de cantigas maravilhosamente estranhas de uma raça selvagem da música folk tradicional da qual o público já se ia cansando aos poucos.
Os pés assentes na terra e o corpo preso na bata não permitiram a Perhacs caminhar muito, para além de ter lançado um disco fantástico que ninguém ouviu. Como poderia alguém ouvi-lo se o trabalho no consultório a impedia de seguir o pedido de Rosenman e da editora de fazer as malas e voar em digressão? Se não dava entrevistas, se não se julgava uma vedeta musical como muitos miúdos e miúdas da sua altura apenas sonhavam ser? Parallelograms caiu no esquecimento pouco depois do seu lançamento. Perhacs regressou aos espelhos e brocas e decidiu seguir em frente sem grande transtorno. Considerou o seu namorisco com a bizarra realidade alternativa de se tornar uma artista “apenas mais uma experiência de vida”. E, essa, seguiu em frente com a normalidade que todos nós conhecemos da nossa.
Mas, nas costas distraídas de Perhacs, algo acontecia: como uma semente atirada ao acaso para o solo fértil, Parallelograms começou a brotar do chão e a chegar aos ouvidos de alguns melómanos mais atentos. A editora de folk Wild Places decidiu reeditá-lo em vinil em 1998, mas foi preciso dois anos de telefonemas falhados para capturar a autorização de Perhacs, em 2000, para editá-lo em CD. Os ouvidos multiplicavam-se. Chegara a ouvidos de executivos discográficos e televisivos (que lhe levaram canções para transformar em genéricos), a ouvidos de jornalistas e a ouvidos de um leque variadíssimo de músicos de todos os géneros (talvez uma das reinterpretações mais curiosas de um tema de Perhacs seja o tratamento que o Notorious B.I.G deu a “Hey, Who Really Cares” em “Niggas Bleed”, de 1997). Surgira também, no início do novo milénio, novo movimento que ia crescendo a olhos vistos na América do Norte – o chamado “new weird america”, uma vaga de músicos que competiam entre si para ver quem escrevia as canções mais estrambólicas que pudessem esvoaçar dentro da estufa dos moldes já ferrugentos do folk do século passado. O disco que Perhacs havia largado ao abandono há trinta anos finalmente encontrara uma casa feita à sua medida. Mas era urgente criar as novas canções para alimentar os novos inquilinos, desejosos de conhecer uma Perhacs do século XXI.
Foi necessário aguardar mais uma década e picos até que, finalmente, pousa a bata por momentos e dirige-se ao estúdio para gravar, com a serenidade de quem foi só ali comprar cigarros, o segundo álbum – The Soul Of All Natural Things, lançado em 2014 através da editora Asthmatic Kitty Records. 44 anos volvidos, a voz soprada de Perhacs, envolta num manto exuberante de arranjos simultaneamente acolhedores e fantasmagóricos, revela os anos que já se passaram desde 1970, mas preserva um encanto de ninfa que nos faz esquecer que, na verdade, é uma velhinha que veste casacos de malha cor-de-rosa e com a qual nos poderíamos cruzar no autocarro ou no supermercado.
O muito aguardado regresso de Perhacs, que quase parece calculado (mas que, sob segunda análise, confirmarmos ser apenas o comportamento daquelas raras pessoas que levam o seu tempo a fazer o que querem fazer) foi recebido calorosamente pelo público e pela crítica, que pode suspirar enfim de alívio ao saber que o brilho que Rosenman havia avistado na sua jovem dentista de Beverly Hills continuava tão claro como sempre. E, em 2017, Perhacs demonstra que o seu regresso não resultou da pressão de fãs obcecados ou da insistência de uma editora gananciosa: lança com visível entusiasmo o seu terceiro álbum, I’m A Harmony, aos 74 anos. E, numa reviravolta verdadeiramente prazerosa, é o seu disco mais bizarro, temperado com instrumentais tresloucados, harmonias amiudadas e letras absurdas.
Perhacs é uma história bonita daquelas que nos traz um quentinho especial no coração. Pensar que, enquanto lançava discos a quarenta e quatro anos de distância uns dos outros, continuava sempre a trabalhar dia após dia no mesmo consultório de Beverly Hills, é delicioso. E é difícil encontrar algo mais belo do que saber que, enquanto escovava dentes alheios, nas suas costas ia nascendo uma maré de fãs que nem sonhava existirem. Todos os dias, alguém descobre a história de Linda Perhacs e Paralellograms. E isso significa que todos os dias são dias bonitos para alguém, algures.