Por detrás da aparente inocência do mundo da pop, esconde-se uma cruel sociedade de castas. Na base da pirâmide, encontram-se milhares de discos tão saborosos como irrelevantes, usados e logo descartados, de tal maneira que ninguém se lembra deles na primavera/verão seguinte. No patamar acima, aparecem umas centenas de clássicos, obras-primas eternas que influenciam várias gerações. No cume da escala social, mais resplandecentes do que as castas inferiores, surgem os aristocráticos discos da década.
Não são necessariamente os melhores mas tiveram um impacto cultural tão forte e captaram tão bem os ares do tempo que os erguemos mais alto como portas-estandarte. Nevermind de ‘91, Sgt. Peppers de ‘67, Elvis Presley de ’56 e Thriller de ‘82 são quatros desses discos emblemáticos, mas o que nos interessa hoje é The Rise And The Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars, o álbum que inventou os anos 70. Um bom disco capta o espírito do seu tempo. Um disco genial cria o espírito do seu tempo.
Bowie não era um Lennon ou um McCartney, cujo génio intuitivo os levou logo ao topo ao primeiro disco. Seis longos anos separam a sua primeira gravação (o single “Liza Jane” de ‘66, assinado com o estranho nome de Davie Jones and The King Bees) da “Ziggymania” de ’72. Pelo caminho, um rasto de discos estrondosamente ignorados pelo público. Que ninguém tenha ligado patavina aos dois primeiros discos, ainda se dá um desconto. Por muito criativo que o homónimo álbum de estreia (’67) seja é a porra de um disco de music hall (o teatro de revista lá do sítio), uma traição à sua paixão pelo rock’n’roll. Por sua vez, só em “Space Oddity” é que o homónimo de ’69 encontra uma voz original (o sucesso isolado deste single dava a Bowie o embaraçoso estatuto de um “one hit wonder”). Que a mesma indiferença tenha acolhido os dois discos seguintes é já aviltante: The Man Who Sold The World (de ’70), o namoro de Bowie com o hard-rock, é a sua primeira obra de maturidade, da mesma forma que Hunky Dory (de ’72) é a sua primeira obra-prima. O insucesso de Hunky Dory doeu, provocando uma enorme insegurança em Bowie. Se o disco que albergava “Changes”, “Oh, You Pretty Things” e “Life on Mars?” não rebentou, seria possível alguma vez chegar lá?
Mas Bowie não era homem de esmorecer facilmente. Estava num pico de criatividade, e tinha um sentimento quase messiânico de que iria mudar a face da música pop. Juntamente com o seu amigo e rival Marc Bolan (o glamouroso frontman dos T. Rex, que Bowie fez questão de homenagear em “Lady Stardust”), sentia uma responsabilidade história de enterrar a herança dos sixties. Inspirado pela simplicidade do rock’n’roll dos fifties, o glam é uma reacção à seriedade pomposa do folk rock e à complexidade barroca do prog. Havia mesmo uma luta de tribos urbanas, um desprezo mútuo entre o pessoal do prog e do glam. Naqueles tempos a duração média das canções favoritas era critério de amizade: três minutos para o glam, dezoito para o prog. Este retorno à crueza do rock original foi recuperado (e amplificado) pelo punk alguns anos mais tarde. O punk é glam sem lantejoulas.
O glam propõe também uma ruptura com os próprios valores da cultura hippie. Em lugar do sentido de comunidade do flower power, o glam advoga o mais profundo narcisimo: “se não estás nos charts, não és glam”. Mas dentro dos diversos dogmas hippies, havia um que despertava em Bowie e Bolan especial resistência: o da autenticidade. Para os pais do glitter rock, interessava-lhes mais a representação do que a espontaneidade, o artifício mais do que a verdade, e a máscara mais do que a identidade. Eram assim herdeiros de Oscar Wilde e da sua máxima de que “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Eram também Pessoanos sem o saberem: a line de Álvaro de Campos “fingir, é conhecer-se” assenta nos heróis glam como uma luva.
Se no culto do artifício do glam havia uma clara ruptura com a ética hippie, na libertação sexual que propunha havia apenas um aprofundamento, por mais polémico que este fosse. Com o questionamento da moral conservadora, os hippies abriram uma Caixa de Pandora que Bowie e Bolan souberam habilmente aproveitar. Ninguém saía do armário na década dos Beatles mas o amor livre dos ’60 abriu claramente a porta à androginia e bissexualidade dos ’70. Bolan pôs lá o pé ao de leve. Bowie entrou de rompante.
Numa entrevista ao Melodie Maker em ’72, Bowie afirmou – para grande escândalo público – que era gay. Foi um acto de coragem pois a homossexualidade era na altura um tremendo tabu, sendo um crime no Reino Unido até ’67 (Oscar Wilde foi uma das suas trágicas vítimas). Quando Bowie vai ao programa televisivo Top of The Pops apresentar o single “Starman” (a aparição que catapultou Ziggy para o sucesso) e a meio da canção põe o braço à volta do ombro do guitarrista Mick Ronson, num gesto deliberadamente ambíguo, milhares de adolescentes que escondiam a sua sexualidade “diferente” e “pecaminosa” sentiram-se, por fim, libertos. A mesma ambiguidade acontecia nos concertos, quando Ziggy, de joelhos, lambia com lascívia as cordas da guitarra de Mick Ronson. Mas não sejamos demasiado idealistas: não era o activismo que motivava Bowie nestes gestos, mas sim o arrojado golpe de marketing que eles representavam. A jogada era arriscada mas resultou: todos os holofotes mediáticos iluminaram ao mesmo tempo Ziggy Stardust, o seu novo alter-ego.
Como Paul Trynka afirmou em Starman: David Bowie – The Definitive Biography, se antes a pop apelava fundamentalmente à pertença e à identificação com os pares, o extraterrestre e bissexual Ziggy era uma apelativa metáfora de não pertença, o messias dos adolescentes solitários e desadaptados. Começou assim toda uma nova tradição: a pop dos outsiders. Sem Ziggy não haveria os Joy Division, os Smiths, os Pulp ou os Nirvana – os melhores alunos do senhor Stardust.
E de onde vem a inspiração para a criação deste alter-ego? O próprio nome da sua personagem fornece algumas pistas. O nome “Ziggy” é uma clara homenagem ao forasteiro Iggy Pop, uma forte influência em Bowie pela sua agressividade e irreverência em palco. O apelido “Stardust” é uma referência ao patético cantor folk The Legendary Stardust Cowboy, que acabou por o influenciar pela sua extravagância e a sua obsessão pelo espaço sideral. O rock’n’roller britânico Vince Taylor não aparece no nome, mas a sua própria vida oferece o molde perfeito para a caracterização de Ziggy: encharcado em LSD, Vince acaba por enlouquecer, convencido de que era um deus extraterrestre.
Criada a psicologia da personagem, era preciso dar-lhe um corpo- só assim a metamorfose de Bowie em Ziggy estaria completa. Se a maquilhagem e a purpurina tinham sido inaugurados por Bolan, foi Bowie que apostou tudo na jogada seguinte: cortar os seus longos cabelos. Nesse pormenor aparentemente insignificante (no glam a aparência nunca é um detalhe), dá-se um importante corte simbólico com a iconografia dos anos sessenta, a última pazada de terra sobre o caixão hippie. O cabelo curto e espigado em cima, pintado a vermelho, dá-lhe um aspecto estranho e alienígena, que seria mais tarde reinventado pelos punks (Sid Vicious não passa de um Ziggy que não toma banho). Os exóticos trajes foram inspirados nas roupas dos “droogs” sociopatas do filme Laranja Mecânica, e desenhados pelo mesmo estilista em versão colorida. Os pais ficam chocados, os filhos deslumbrados, mas ambas as gerações se unem na mesma exclamação. Nunca ninguém antes vira nada assim.
Poucos discos glam resistiram ao teste do tempo. Os álbuns de então dos Sweet, Slade e Mott the Hoople soam-nos hoje deliciosamente datados. Mas Ziggy Stardust sabe a hoje, sem uma única teia de aranha. É, sem dúvida, a grande obra-prima do glam: o glam levado até às suas últimas consequências. Musicalmente, o disco é a síntese perfeita entre a agressividade de The Man Who Sold The World e o poder melódico de Hunky Dory. Para o som sair cru e enérgico, Bowie faz questão de ensaiar e gravar depressa. A sua voz é quase sempre gravada ao primeiro ou ao segundo take.
Em termos narrativos, consegue algo que não é nada fácil: ser conceptual sem cair na chatice ou na pretensão. O segredo está na leveza da estrutura narrativa, que com apenas meia-dúzia de canções-polaroid, consegue rapidamente traçar a ascensão e a queda do nosso extraterrestre favorito.
Na canção de abertura “Five Years”, é pincelado o cenário apocalíptico onde decorre a acção: por esgotamento de recursos naturais, o planeta Terra está condenado a extinguir-se em cinco anos. As suas memórias de infância na Brixton do pós-guerra, onde brincava por entre as crateras e destroços provocados pelas bombas alemãs, ajudam-no a criar estes ambientes distópicos e decadentes, já explorados em The Man Who Sold The World. Em “Moonage Daydream”, Ziggy anuncia-se enquanto o messias extra-terrestre e bissexual que irá salvar a Terra através do rock’n’roll (“I’m the mama-papa coming for you/I’m the space invader, I’ll be a rock’n’rolling bitch for you”). Em “Starman” um jovem ouve na rádio, deslumbrado, a chegada libertadora de Ziggy (“there’s a starman waiting in the sky”). O clímax narrativo ocorre em “Ziggy Stardust”: o narcisismo descontrolado de Ziggy (“making love with his ego, Ziggy sucked up into his mind) leva a que este seja despedaçado até à morte pelas mãos dos próprios fãs enlouquecidos (“so we bitched about his fans, and should we crush his sweet hands?”; “when the kids had killed the man I had to break up the band”). “Rock and Roll Suicide” encerra o álbum, a elegia dedicado ao herói que morreu em nome do rock’n’roll.
O tema do disco é precisamente esse: uma reflexão sobre a fama e o declínio, curiosamente profética da própria decadência de Bowie nos anos 80. Mais do que isso, Ziggy Stardust é uma carta apaixonada ao rock’n’roll, a força vital que faz girar o mundo com o seu frenético compasso quaternário. É também um manifesto: ou o rock é excessivo e provocador ou não é rock. Ninguém que ame verdadeiramente o rock and roll pode ficar indiferente a este disco.
Mas mais do que as letras de Bowie, cheias de imagens poéticas ambíguas e ressonantes (“the church of man, love”; “tigers on vaselyne”), é a sua teatralidade que dá vida ao enredo. Ziggy Stardust é o espectáculo total, o ponto mágico onde o rock, o teatro, a moda e a ficção científica se intercepcionam. Melodias simples como a “Five Years” baseiam todo o seu encanto nos mil e uns cambiantes dramáticos que a voz de Bowie lhes empresta. Não se pense, porém, que Ziggy combate sozinho contra a extinção do planeta. Stardust é sempre apoiado nos brilhantes Spiders From Mars, e, em especial, no inventivo Mick Ronson. Mick é um homem dos sete instrumentos, que toca guitarra, piano e faz os inspirados arranjos. No palco, todas as atenções recaem sobre a dupla Ziggy/Ronson, cujo magnetismo advém da força que atrai os opostos. Ziggy é o lado feminino; Ronson, o lado masculino. Juntos, são o sexo proibido.
O sucesso de Ziggy nos dois lados do oceano deu a Bowie um sentimento de quase omnipotência. Como ser divino que era, quis abraçar ao mesmo tempo todo o universo. E conseguiu. Salvou o seu herói Lou Reed da sua queda, produzindo o brilhante Transformers. Ofereceu de mão beijada aos Mott The Hoople o grande hino dos anos 70: o eterno “All The Young Dudes”. E misturou o Raw Power dos Stooges, o começo de uma profícua parceria com Iggy Pop, que mais tarde culminaria nos influentes Idiot e Lust For Life.
Mas Bowie estava a brincar com um perigoso jogo de espelhos. Imergira de tal forma na personagem Ziggy que tinha cada vez mais dificuldade em sair dela. Os milhares de fãs que o tratavam como se ele realmente fosse um messias vindo das estrelas reforçavam a sua crise de identidade. Actor e personagem eram cada vez mais uma só pessoa, unidos no mesmo estilo de vida excessivo, glamouroso e auto-destrutivo. Bowie temia pela sua saúde mental. Na sua família havia um grande historial de loucura. O seu irmão mais velho, Terry Jones – o mentor que lhe deu a conhecer Kerouac, o jazz e os Cream – enlouquecera também. Terry fechou-se no estranho novo mundo da esquizofrenia e David nunca conseguiu entrar nele, uma ferida imensa que nunca fechou por completo. Bowie tinha que fazer qualquer coisa, antes que a sua criação tomasse conta dele para sempre. Ziggy dera-lhe, de facto, muito – o reconhecimento que ele almejava há oito anos – mas em troca exigia-lhe um preço demasiado elevado: a sua própria sanidade.
No dia 3 de Julho de ’73, Ziggy Stardust e os Spiders From Mars partiram para o último concerto da digressão. O espectáculo foi em Londres, cidade-natal tanto de Bowie como de Ziggy. O ambiente estava especialmente emotivo. Na plateia, milhares de adolescentes ávidos adulavam o seu Deus, muitos deles réplicas perfeitas de Ziggy. Os Spiders From Mars estavam especialmente inspirados, tocando de uma forma mais intensa do que nunca. Quase no final, Ziggy anuncia que o espectáculo era não só o último da digressão como também o último de sempre. Logo de seguida, os Spiders From Mars começam a tocar a última canção do concerto, a simbólica “Rock and Roll Suicide”. O público fica despedaçado com a notícia. O seu herói é infamemente morto no momento do seu auge, um jogo de espelhos com o que sucede na própria narrativa do disco. Muitos dos jovens choram copiosamente, esborratando a maquilhagem à Ziggy. Quando Bowie canta: “you’re not alone, give me your hands”, todos juntam as mãos, comovidos. Ziggy e os Spiders From Mars abandonam o palco. Para sempre.