Como se de uma carta aberta para a sua eu em crescimento se tratasse, com todas as questões e ânsias que o desenvolvimento acarreta, Julia oferece-nos um conjunto de poemas sobre a vida numa altura em que tudo parece incerto e assustador.
Julia Jacklin tinha a ideia de que queria ser assistente social, até acabar a faculdade e decidir tirar dois anos para experimentar ser música, decisão que os pais nunca compreenderam inteiramente. Deixando para trás a sua vida numa fábrica de óleos essenciais, a australiana lança o seu primeiro álbum, Don’t Let the Kids Win, em outubro de 2016. Começou assim a sua jornada contra o que dela era esperado. O mundo só agradece.
Enquanto disco de estreia que precede a revolução que é Crushing, o seu segundo álbum de 2019, Don’t Let The Kids Win mostra-se interessante pelo aspeto poético das letras; a verdade é que ela é uma grande escritora. Este álbum convida à reflexão sobre nós próprios, o que é esperado de nós e o que fazemos com essa informação. A voz inconfundível de Julia traz-nos paz de espírito, mesmo com o mais sério dos assuntos, dadas as músicas cruas e desconfortáveis. A ironia que espreita sorrateiramente faz-nos rir timidamente, sem sabermos se é aceitável a momentânea brincadeira no meio de palavras ásperas. Fala-se muito do embate com o facto de a vida não ser tão simples como parecia ao início.
Começamos a nossa viagem ao mundo Julia com “Pool Party”, onde vemos o contraste entre uma festa de piscina cheia de vida e uma relação passada da qual ela quer sair, uma vez confrontada com a realidade de que, com o tempo, a pequenez sobressai de quem menos esperávamos (“Hit me hard when I found height don’t make a man”). Segue-se “Leadlight”, cuja crescente intensidade das batidas de bateria e de uma guitarra suave é interrompida pela sua voz etérea para nos falar da simplicidade (e da inocência) do amor jovem. Os coros finais trazem luz à afirmação da libertação de uma relação que lhe sabia a pouco, depois de mostrar que tinha ido à aventura, mas que o rapaz não a tinha sabido acompanhar (“But I can’t promise I’ll be here to see this whole love through”).
“Coming of age” é mais agressiva, mais punk rock, tal qual uma crise existencial adolescente. Julia troca a voz por um grito de ajuda (ou um desabafo irritado). Procura alguém que a leve a fazer todas as coisas com que sonha (“I gotta find myself a girl / Who makes me wanna take on the world”), até perceber que só vai sair do sítio onde está se fizer as coisas sozinha, desistindo de esperar que o mundo aconteça à sua frente (“But I’ll be pushing up that Hill / Until I get what’s mine”).
Para equilibrar, “Elizabeth” vem de mansinho, com riffs de guitarra suaves para acompanhar uma voz igualmente suave e faz ponte para “Motherland”, que nos chega em bicos dos pés, até ganhar confiança, onde Julia diz em voz alta, com a entrada da bateria, que não se quer tornar uma estranha para si própria. Questiona-se se alguma vez encontrará o seu porto seguro, uma pausa dos seus dias; se algum dia regressará a casa. Confronta-se com o envelhecimento, que se revela um gatilho para a lembrança de que os sonhos da juventude afinal ainda não estão realizados (“These new lines on my face / Spell out “girl pick up your pace / If you want to stay true to what your younger self would do”). O título deixa antever o seu feminismo que aparecerá em peso no seu álbum seguinte, Crushing.

Como por esta altura já estamos suficientemente desconcertados, somos apanhados de surpresa com “Small Talk”, uma música divertida, ao som da qual dificilmente se evita um abanar de ombros ou uma dancinha com a cabeça de olhos fechados. No fundo, revela-se uma reflexão sobre como perdemos demasiado tempo a imaginar a vida que queremos para nós em vez de fazermos por que ela aconteça. Os desejos não passam disso mesmo e isso é um desperdício da nossa vida real, que vale tanto a pena.
A sua querida guitarra elétrica aparece solitária em “L.A Dream”, pressagiando a letra soturna e espelhando a solidão em que Julia se mergulha. Com ironia, reclama do péssimo timing do agora ex-namorado para a deixar, passando o par a ter vidas separadas de repente. O desprezo dele pelos sentimentos dela passa para esta faixa profundamente triste. Já “Sweet Step” é a prova de que somos frágeis. Continuaremos sempre a tentar alcançar um objetivo maior, nunca saciando esta vontade de sermos melhores. Viver assim é exaustivo, como ouvimos no seu tom. Esta melancolia transparece, depois, na voz que canta “Same Airport, Different Man”, na qual percorremos uma vida inteira em três minutos.
O pôr-do-sol, que é tão belo mas se vai embora rapidamente, deixa-nos a noite escura e fria. Assim é “Hay Plain”. Contém uma letra carregada de emoções fortes, que se tentam projetar através da melodia inicialmente calma. O ritmo vai crescendo, assim como a necessidade de deitar cá para fora tudo o que se tem entalado na garganta. Com “Don’t Let The Kids Win”, Julia despede-se com uma conversa consigo própria, dando-se conselhos sobre os erros passados. Confessa-nos que não sabe o que anda a fazer com a vida, assim como todos nós. É um aconchego. Imensamente pessoal e intensa, é uma boa música para chorar.
Termina assim um álbum que deixa os ouvintes de lenço na mão a limpar a cara ou a tentar superar a pele de galinha. Julia disse que procurou dar atenção a todos os elementos, para dar vida a uma harmonia plena e perspicaz, que acaba por nos surgir tão orgânica. De facto, a musicalidade tem primor, mas o que chama por nós são as letras fortes e sem medos que mexem connosco, compondo um álbum sincero e íntimo. Consideramo-nos amigos dela porque nos sentimos acabados de sair de uma conversa de adolescentes que durou a noite inteira. É intenso, real e mostra a beleza da realidade e da imperfeição. Diz-nos com carinho que todos os nossos sentimentos são válidos. É como uma irmã mais velha.
Cada música é o seu estilo e tem vida própria. Por isso é que o álbum é tão dinâmico e conforta todos os humores. Alegra a tristeza e acalma o êxtase. As letras pesadas conseguem ser uma brisa fresca na cara pela leveza com que nos são transmitidas e por nos porem a dançar sem dificuldade, mas, por outro lado, são um abraço apertado. Com simplicidade, normalizam os nossos medos e as nossas dúvidas. Julia assegura-nos de que vamos ficar todos bem. Se não ficarmos, podemos ouvir este álbum em conjunto para conforto comunitário.