Em 2010, JP Simões e Afonso Pais gravaram Onde Mora o Mundo, uma dolorosa catarse emocional sobre os desencontros do amor. Em Maio deste ano JP lança Roma, um disco igualmente soberbo mas em clara ruptura com o espírito introspectivo e melancólico de Onde Mora o Mundo: onde antes havia eu, há agora o mundo; onde antes havia rendição – e até auto-destruição-, há agora luta; onde antes havia um gélido jazz europeu, há agora ritmos quentes afro-brasileiros; onde antes havia tristeza e lucidez, há agora a alegria louca do arlequim que zomba dos poderes instituídos.
Esse lado político começa logo pelo título e capa do disco: se o novo império já não tem sede em Roma mas sim em Wall Street, a prepotência do poder – tão expressivamente simbolizada pelo sinistro esqueleto de gravata que vemos na capa– é, no fundo, sempre a mesma.
Há duas canções em que JP Simões é mais explícito no seu sarcasmo político. Em “Samba Radioactivo” – um samba cuja música foi escrita por Tércio Borges, que também dá uma perninha no cavaquinho – a sua mordacidade é apontada à mercantilização crescente de todas as esferas da vida: “muito em breve cidadão pagarás o ar que engoles/e os passos que dás no chão/todo o mar, toda a terra tem dono/florescem corporações/e até mesmo a lua não escapa no mapa das transacções”. Em “Rio-me de Janeiro” – um choro brasileiro – o ácido do seu humor é arremessado contra a elite yuppie que nos governa (“hoje vens de computador/de taliban de Goldman Sachs, money, money, Milton Friedman”) e a perversa culpabilização que tenta impor às suas vítimas: “vai para a culpa que te pariu”. Talvez não seja por acaso que as duas músicas mais abertamente políticas do disco sejam vestidas com as cores garridas do Brasil. Creio mesmo ser um statement, uma resistência contra o cinzentismo do poder. Da mesma maneira, a linha melódica assobiada logo na abertura do disco (“La strada”, cantada em italiano) parece cumprir a mesma função: esconjurar o medo e a tristeza que se abateram sobre nós, tão convenientes ao império do dinheiro- a nova Roma. Mas JP dispara também em outra direcção: os próprios lugares-comuns da canção de intervenção são profundamente subvertidos com o humor e irreverência que o caracterizam.
Depois vêm outras canções cuja mensagem política é mais subliminar. No single “Gosto de me drogar”, todo ele vestido com um cativante swing de New Orleans, o escape das drogas já não é visto enquanto atracção irresistível para o abismo (como sucede no “Caro Comparsa” do álbum anterior) mas sim enquanto metáfora de resignação fatalista (“dizem que tudo está predestinado/que não há nada a fazer/então mais vale estar embriagado/pois é o que tinha de ser) e de alienação política (“o meu país é lindo/e a humanidade é mesmo sei lá o quê”). Já na acústica “Ils cassent le monde” (na qual o conjunto de brilhantes instrumentistas que o acompanham ao longo disco aproveita para descansar um pouco) JP rouba um lindíssimo poema de Boris Vian sobre a resistência à objectividade do poder através da subjectividade da poesia: “Eles estraçalham o mundo/em pequenos pedaços/a golpes de martelo/mas não me importa/o que resta é suficiente para mim/a erva azul/a gota de orvalho/um pássaro com medo/o meu coração”.
Mas mesmo em Roma – sem dúvida o álbum mais político da discografia de JP Simões – há canções de amor. Vejam-se os casos de “A million songs of yesterday” (onde se pisca o olho a Joni Mitchell) e de “Valsa Rancho” (original de Francis Hime e de Chico Buarque, que JP faz questão de cantar também no português cana-de-açúcar do Brasil). Nestas canções já não há o fel do desencontro que tanto amargou Onde Mora o Mundo; são agora canções felizes, que celebram o milagre do instante em que o amor acontece (“vamos sempre navegar à toa/vamos sempre naufragar/mas vai maravilhar o dia que vem”, canta JP Simões no afrobeat de “O Português Voador”). Como metáforas do amor, JP recorre à espuma (“somos pouco mais que a espuma de um sonho”, canta em “O Fardo do Amor”) e ao sonho (“mas veio a manhã/e uns olhos de cinza macia/parecia um sonho também/parecia que Deus existia/no dia em que vi o meu bem”, é dito em “No dia em que vi o meu bem”). Está então completo o retrato que JP faz do amor: irreal e intenso como um sonho, efémero e encantador como a espuma do mar…
Quando há pouco tempo fiz uma reportagem de um concerto de JP, e ainda mal conhecia Roma, escrevi: “Quando um dia se fizer a História da minha geração (a nascida em Portugal na década de 70), dir-se-á que ela nos deu dois grandes escritores de canções. O primeiro nasceu no Porto, passeou por diversas latitudes da pop anglo-saxónica e chama-se Manel Cruz. O segundo nasceu em Coimbra, aventura-se pelos territórios do Jazz, da Bossanova e da Canção Francesa, e chama-se JP Simões”. O facto de conhecer agora o maravilhoso Roma apenas reforça esta convicção.