Foi belo o concerto dos Chão Maior na SMUP da Parede: intimista, bucólico mas também perigoso. O novo jazz português anda rijo…
A banda de jazz Chão Maior – liderada pelo trompetista Yaw Tembe, e com o mago Norberto Lobo na guitarra eléctrica – foi no sábado passado à SMUP interpretar na íntegra o seu álbum de estreia (o bonito Drawing Circles, de 2021). Apresentaram-se em quinteto, sem o trombone de Yuri Antunes, com a secção de metais reduzida a dois trompetes (Tembe e João Almeida), mas ninguém pediu o dinheiro de volta, bem pelo contrário: só magia e lirismo para dar e vender.
Entraram, sentaram-se, tocaram, quase sem nos dirigir uma palavra, criando intimismo sem truques, só com a pura música. E que regalo saborear as composições de Yaw Tembe, um primeiro círculo desenhado com um pau na areia molhada, e as demais circunferências repetindo a ideia original com pequenas variações, à procura da perfeição harmónica, ou, pelo contrário, corrompendo-a a cada novo anel concêntrico.
A bateria possante de Ricardo Martins – que também dá uma perninha nos Pop Dell’Arte – é engraçada porque se fecha no seu groove pessoal e intransmissível, ostensivamente indiferente ao pulsar do resto da banda, criando um bonito efeito de distância.
Leonor Arnault – delicada e dissonante como a tipa dos Stereolab – canta quase sempre sem palavras – bonita excepção em “Círculo 2” -, de igual para igual com as outras tonalidades, a voz como puro instrumento.
Não obstante o espaço inegociável para a improvisação, sentimos que as linhas melódicas dos trompetes e da voz eram mais planeadas do que a guitarra eléctrica de Norberto Lobo, um espírito demasiado livre para poder ser domado pelo chicote de uma pauta. Da mesma maneira, se todos procuraram explorar a riqueza de diferentes timbres – com manipulação electrónica, por exemplo -, Norberto Lobo foi sempre mais longe nas nuances da textura.
O segredo dos Chão Maior – sentimos – está na força dos seus contrastes: o orquestrado e o improvisado, o harmonioso e o dissonante, a ordem e o caos. A estrondosa bateria tornando tudo o resto mais delicado. Os interlúdios de fritaria quase atonal ampliando a beleza harmónica do conjunto.
No final, fingiram que se iam embora, mas a malta percebeu logo que voltariam para o encore, mais uma argola, mais uma viagem, desta feita chamada “Círculo 4”, um dos temas mais contemplativos do alinhamento. Foi bonita a noite, pá. O nosso papo cheio de poesia. E a alma prenhe de um chão maior…
Fotografias: Rui Gato