WARM é composto por canções ancoradas em guitarras e voz, bem escritas e bem cantadas, das mais sussurradas e comoventes pela vulnerabilidade às mais entusiásticas e comoventes pela procura de uma comunidade, de um encontro, de amor.
É tentador dizer que, aos 50 anos, Jeff Tweedy começou a preparar (ou será melhor dizer encenar?) a morte. Em 2018, ano em que celebrou 51 anos de idade, o vocalista, guitarrista e compositor dos Wilco lançou um livro de memórias que funciona como uma autobiografia. Paralelamente lançou WARM, o seu primeiro álbum a solo inteiramente de originais. Ouvindo-o, paralelamente ao encantamento que o disco provoca (já lá iremos), a sensação até sai reforçada, à primeira vista: Tweedy começa o disco a cantar “toda a minha vida estive envolvido / nas bombas que caíram sobre aqueles que vocês amam”, parecendo um fantasma que revê uma existência que se completou. Continuará, cantando “mas os telefones estão mortos / tal como está a luz / tal como estás tu / e, amor, tal como também eu estou”, lançando a dúvida “e se estivesse morto (…)?” ou entoando os belíssimos versos de “From Far Away”:
“Se eu morrer/Não me enterres/Abana-me/como a uma velha máquina./Leva os meus livros/e as minhas revistas,/as minhas fotografias/de nós os dois,/tudo aquilo de que não vou precisar”
De que a morte paira em WARM, um disco em que quando se instala a quietude (“Bombs Above”, “How Hard It Is For a Desert To Die”, “From Far Away”, “Warm (When the Sun Has Died)” e “How Will I Find You?”) soa mesmo a uma qualquer despedida, não há grandes dúvidas. Dizer que este é um disco assombrado pela morte (talvez a do pai de Jeff Tweedy em 2017, talvez a acumulação de tantas com que qualquer tipo se vai encontrando ao longo da vida), é factual. Mas WARM é, parece-me, bastante mais um disco sobre a vida, sobre o que vai resistindo a essas mortes que a vão pontuando de tempos a tempos, sobre um passado que aos 50 se revê sem lhe impor testamento. Tomemos de empréstimo um verso da primeira canção, “Bombs Above”: “Deixo para trás um rasto de canções”. Reforcemo-lo com versos chave da terceira canção, “Don’t Forget”, e de “Warm (When the Sun Has Died)”: “Todos pensamos na morte / não deixas que isso te mate” e “calor quando o sol morreu”.
Na reflexão que fez sobre o disco, transposta no texto que acompanha a edição do álbum (as chamadas “liner notes”), o escritor George Saunders debruça-se sobre o assunto e explica-o muito melhor do que nós:
“Uma pessoa chega a uma certa fase da vida — eu próprio estou nessa fase — em que, não estando já na fase de criar filhos (essa magnífica distração), começa a pensar na morte não como uma qualquer abstração que acontece aos outros mas como um comboio grande e indiferente que, mesmo neste preciso momento, está a rolar de uma estação localizada a uma distância desconhecida mas não infinita. “Não é agora altura de finalmente ser feliz?”, começa a perguntar o universo, seguindo-se uma segunda pergunta complicada: “Mas como posso eu ser feliz, num mundo como este?” Colocado de outra forma: parecemos nascer destinados a amar, e ainda assim aqui tudo é condicional (i.e., chega ao fim). Como é que devemos viver, quando um grande piano chamado ‘morte’ vai cair não apenas sobre nós, mas sobre aqueles que amamos? Este álbum é, para mim, uma resposta. Ou, mais do que uma resposta, é a validação da pergunta. Devo desconfiar da vida ou aproveitá-la, pergunta-se o ouvinte? Sim, diz o Jeff Tweedy.
Num certo sentido, a música de Tweedy (recuemos aqui aos Wilco) foi sempre uma espécie de resistência empática à(s) morte(s). Ele não parece ser um daqueles músicos ou poetas que vivem permanentemente infelizes, cultivando uma aura de sofridos, existencialistas e epicuristas que vão deixando queimar o cigarro e prolongar o uísque com pose fúnebre. Jeff Tweedy não parece um tipo obcecado com a morte, paralisado e incapaz de a viver (porque ela também se vive, dia a dia, perda a perda), não parece ter a pose de desprendimento que quando não é autêntica (como era, por exemplo, com Townes Van Zandt, só para citar outro músico), assemelha-se a caricatura estética.
As canções de Jeff Tweedy, a solo e nos Wilco, nunca tiveram uma nostalgia ou infelicidade permanente, apesar do tom abandonado dos temas. É mais fácil pensar nele como um tipo tranquilo, que olha para o mundo com uma acalmia constante, nem eufórica nem deprimida. Como um tipo que conduz o carro pelo grande Oeste americano, que vai vivendo como pode. Não parece o tipo mais feliz do mundo, não parece o tipo com menos problemas do mundo, parece um tipo que, deslocado do mundo, ainda mais da pressa, rapidez e êxtase do mundo de hoje, vai vivendo como pode, retirando dele o que pode, olhando-o como uma estranho que procura a empatia. Como um estranho que procura a comoção.
George Saunders diz que Jeff Tweedy “é o nosso grande, irónico, poeta de consolação americano”. Em “From Far Away”, ouvimo-lo cantar “From outer space / I am you / At distances / You’re me too” e o diagnóstico parece certo. Em “I Know What It’s Like”, ouvimo-lo cantar: “Quando um dia soalheiro / se tornar um dia de chuva / lembra-te de mim / eu sei como é (…) Eu sei que é uma mentira / quando dizes que estás bem (…)” e o diagnóstico parece certo. “Eu sei como é”. Sabes pois.
Musicalmente, a receita de WARM não inventa a roda. São canções ancoradas em guitarras e voz, bem escritas e bem cantadas, das mais sussurradas e comoventes pela vulnerabilidade às mais entusiásticas e comoventes pela procura de uma comunidade, de um encontro, de amor (“Let’s Go Rain”). Estamos ou não estamos a falar do tipo que escreveu uma canção chamada “You’re Not Alone” para a cantora de gospel e soul Mavis Staples?
As linhas de guitarra acústica e de pedal steel são devastadoras, as percussões de Glenn Kotche (dos Wilco) não arrebatam menos, a voz de quem canta o que sabe e põe tudo de si nisso não desilude.
Jeff Tweedy não precisava de um álbum a solo de originais para entrar numa família que começa em Bob Dylan (digamos, para não ir mais atrás) e descende em Bruce Springsteen. Há nele, mais do que noutros contemporâneos seus que conhecem a tradição a fundo e escrevem poeticamente (Hamilton Leithauser, Matt Berninger, alguns mais, não muitos), mais do que noutros históricos sem os quais a música americana não seria tão rica e diversa, uma personificação do país, um classicismo inclusivo que abarca todos, uma espécie de cura emocional coletiva através de um som de tristeza que é muito complicada de lograr. Já tem um sucessor (Kevin Morby provou-o com Singing Saw, disco desavergonhadamente filho dos Wilco), mas Jeff Tweedy é, hoje, um “clássico”, um compositor de canções maior, a prova de que o “american songbook” não pára de avançar e comover.
Jeff Tweedy não precisava de WARM para provar nada disto, nós é que precisávamos de o ouvir agora a solo para não nos esquecermos nunca que pese embora a química coletiva dos Wilco, ele, Jeff Tweedy, tem nome próprio e é um dos grandes escritores de canções das últimas décadas. Quanto ao resto, é tentar continuar a procurar na empatia um motor e um motivo para a vida e para o mundo. “I don’t believe in Heaven / I keep some heat inside / Like a red brick in the summer / Warm when the sun has died”. Ou como cantava o Palma, um Tweedy com bagaço em vez de uísque, “enquanto houver estrada para andar”…