Lançado em maio, Água-má é o quarto álbum do guitarrista Rui Carvalho. Gravado entre o continente e a Madeira, é um disco complexo e que se vai desvendando aos poucos. A belíssima capa que o encerra surgiu antes de qualquer música e talvez por isso seja o registo mais impressionista do compositor, suscitando vibrantes e oníricas imagens a cada segundo que passa.
Era ali como tinha sido sempre. A praia era o santuário de todos os dias e, devoto como era, à mesma hora de sempre lá estava Ele, pronto para renascer com o abraço frio do Mar. Durante breves minutos na alvorada, a maré revelava aquele lugar castigador e severo, onde o sossego se escondia entre as rochas negras. Apesar de calejados, os pés cortavam-se-lhe sempre naquelas umbrosas arestas afiadas pelo tempo. O ardor do sal nas feridas revelava-lhe a paz que tanto ansiava e, portanto, pouco lhe importava o sofrimento implicado neste ritual tão seu – já nem se recordava de quando e porquê houvera começado, mas não sobrevivia sem ele.
Naquela madrugada, não dormira, atormentado pela memória do seu último grande infortúnio. Já não acontecia há umas boas semanas, mas, invariavelmente como de todas as que pensava sobre isso, as últimas palavras que Ela lhe tinha dito começaram a ecoar na cabeça dele com especial volume. “Não me voltes atrás”, sussurrara com o pesar de uma falésia a desmoronar-se. Tinham-se passado cinco meses e mesmo assim ainda não tinha deixado de matutar naquilo.
Foi o caminho todo até à praia a reviver cada um daqueles fonemas, que tinham ditado o fim d’Eles. Recordou os momentos a seguir a essa trágica enunciação, em que percorreu uma última vez o corpo nu d’Ela, com a vista embaciada pelas lágrimas silenciosas, e saiu, incapaz de fazer mais nada senão respeitar o fado que Ela lhe houvera imposto. Num riso melancólico, lembrou-se daquilo que nela era imperfeito e da forma como ela sabia tornar tudo tão leve. Por exemplo, como costumava dizer, sobre a deformação que um acidente de viação grave lhe havia impresso no torso, que os seus ombros tinham chumbado a geografia e, por isso, não sabiam ser paralelos ao horizonte.
Contudo, a canção dos grãos de areia aos seus pés e a sinfonia das gotas de maresia bafejadas pelo Bóreas na sua cara soavam-lhe diferentes. Naquela manhã, as melodias das coisas naturais carregavam uma ternura maternal que nem chuva, nem cães – representantes da praia além-areal – conseguiam igualar. A composição de notas delicadas comoveu-o de tal forma que, deslumbrado pelo Belo, se demorou mais do que era costume. E então, pela primeira vez na vida, falhou a entrada no seu santuário.
No momento em que se apercebeu disto, caiu de joelhos, aterrado de um medo pavoroso. Os seus olhos assombrados pelo augúrio vagueavam perdidos na rebentação, à procura do perdão na imensidão incerta das vagas. Foi então que a viu: na crista de uma onda, uma enorme água-má fluía graciosa e serenamente nas águas cristalinas. A dança das suas vestes brancas era como o ópio. Fixou-a intensamente, preso num sonho moroso e lânguido em que segundos se fizeram horas de contemplação. Tudo ali lhe lembrava Ela. Numa ondulação particularmente maravilhosa daquele estranho ser, ouviu ao longe a profunda voz do oceano, que o convidava a juntar-se àquela criatura sua filha, a tornar-se água para sempre.
Considerou a proposta durante largos minutos. Afinal, o oceano era a sua casa. Só ali é que ele sabia despir-se para lá das roupas e ser Ele. Esse pensamento assustou-o mais do que qualquer outra coisa (viver nu é uma bonita utopia, mas ninguém quer ver a sua pele ir de uva a passa). Queria poder não ser Ele, queria ser também o Outro, que às vezes partia floresta adentro, com uma ingenuidade pueril, na perseguição de bananas, que julgava ver camelos nas levadas quando os ares africanos invadiam a atmosfera e a desidratação se apoderava dele. Ali, onde a poncha, como o vento, encerrava segredos trancados pelo tempo, o Outro aventurava-se e perdia-se nos encantos do mundo.
O Outro era, até à mais ínfima condição, Ele. Inconcebíveis seriam aquelas existências, uma sem a outra. E, no entanto, o abismo semântico que os separava era inultrapassável. Eram dois num só, separados por um etéreo véu cor de cereja, eterno como o sol que nascia entre as nuvens. E, no entanto, ser Ele e carregar consigo o Outro era que lhe tinha permitido ser com Ela, numa trindade efémera. Ela, ser perfeito, era completa e una: consigo carregava somente a imensidão do Fogo e a leveza cortante do Ar.
E, mais uma vez, dava por si a pensar n’Ela. Em como, mesmo depois dessa união sublime e plena, tinha aprendido a aceitar a incapacidade de controlar aquilo que lhe escapava ao alcance. “O que a voz não canta jaz para além de mim”, pensou. Então, finalmente pronto para o confrontar, respondeu ao Mar: “não, não danço”, e ficou quieto. Assim continuou, enquanto se deixava levar pela maré, com os pulmões a encher-se de um frio sufocante. Marraram as ondas, partiu-se o pontão. E, assim, Ele vestiu a cor das rochas e seguiu com a água-má, numa dança eterna.
Perdido na metafísica inútil de tudo aquilo, lá abriu os olhos e afugentou aquele sono delirante. Tinha dormido durante horas, mas não se sentia repousado. À sua frente, o Mar. Os seus pés cortados pelas rochas descansavam levemente na areia quente. Ao seu lado, Ela olhava-o, perdida num sorriso enternecedor. Era ali como tinha sido sempre.