Já na reta final do ano, Rosalía largou no mundo a sua obra-prima, um casamento improvável e surpreendentemente bem sucedido entre a tradição centenária do flamenco espanhol e a contemporaneidade sedutora do pop e do r&b. Um triunfo como poucos.
Quando, no início de novembro deste ano, Rosalía Vila Tobella, ou simplesmente Rosalía, lançou o seu El Mal Querer, não foram poucos aqueles que começaram a bisbilhotar relativamente à sua autenticidade, acusando a cantora, compositora e produtora de Madrid de ser uma bem oleada máquina da indústria, matematicamente orquestrada para conquistar os corações do público e da crítica. Era demasiado perfeito para ser orgânico: uma mistura que prometia resultar tão bem como água e azeite – os ritmos e melodias oriundos de séculos e séculos de tradição espanhola e as ideias orelhudas das novas tendências do pop e do r&b – saíra um produto sem defeito. Além disso, a jovem música conseguira uma proeza rara: unir num coro singular de elogios a crítica musical reputada e o público mainstream, que se cruzam mais raramente do que cães e gatos (apesar de, nos últimos anos, se ter assistido a um esforço de ambas partes para uma relação mais harmoniosa). Como exemplo, basta recordar que, uma semana depois de ter pisado o palco dos prémios europeus da MTV (haverá lá coisa mais povinho?) cumprimentada por um rugir de aplausos, acrescentava ao seu currículo uma cobiçada alta nota na sempre imprevisível Pitchfork. Mas uma escuta mais atenta a El Mal Querer e a todo o universo narrativo e musical que o contorna revela que seria impossível resultar de um plano maléfico de uma indústria musical sanguessuga. Em vez disso, é um exercício de estudo e esforço académico, do qual Rosalía recolhe agora os merecidos sumarentos frutos.
Em 2017, Rosalía não era uma figura gigante da consciência pop como se tem vindo a tornar nos últimos meses, mas já reunira um simpático punhado de admiradores graças ao seu trabalho em Los Ángeles, o seu promissor álbum de estreia desse ano. Em Los Ángeles, Rosalía apresentava-se ao mundo como uma poderosa voz do nuevo flamenco, oferecendo uma perspetiva rejuvenescida do estilo centenário mas nunca vagueando muito para além dos cânones escolásticos da tradição. Encontrara um nicho no qual conseguiria subsistir confortavelmente ao longo dos próximos anos. No entanto, a sede de partir em direção ao desconhecido apoderava-se dela, e, mal pode, regressou ao estúdio para começar a esculpir possivelmente o mais ambicioso projeto musical do ano seguinte.
Para criar El Mal Querer, Rosalía baseou-se num objeto improvável: um romance espanhol anónimo do século treze entitulado simplesmente Flamenca, que conta uma história simples como nos parecem ser todas as histórias de amor: um homem apaixona-se por uma mulher e com ela se casa, mas, enlouquecendo de ciúmes, tranca-a numa torre, provocando à donzela uma infelicidade terrível. É um conto trágico e inacabado, e Rosalía pega corajosamente nas rédeas para lhe dar um fim, mas não só: também para lhe conferir um novo fôlego dramático, contido na respiração de uma mulher que conta uma história que era suposto ter sido contada por um homem. Para o fazer, em El Mal Querer, divide a trama em onze capítulos, claros e concisos, aos quais dá nomes de uma só palavra que descrevem sucintamente os sentimentos que envolvem cada uma das fases da trama, com a mestria de uma romancista experimentada.
El Mal Querer abre com um estrondo: “Malamente”, que, ao crepitar dos primeiros acordes frios do sintetizador e à primeira vez que a palma de uma mão toca na outra para formar a camada de compassos típicos do flamenco, soa a algo verdadeiramente importante. O capítulo inicial recebe o nome de Augurio, que se traduz para augúrio, e a sua atmosfera, simultaneamente orelhuda e gélida, prepara-nos para a jornada trágica que se agiganta diante da nossa protagonista, que nem a adivinha. A produção imaculada de El Guincho (presente em todo o disco), que Rosalía recrutou para mitigar as suas raízes flamencas com o sabor açucarado da pop e r&b, é de um cool arrebatador e imediatamente reconhecível. Depois de uma imponente introdução, segue-se um dos temas mais fiéis às origens tradicionais de Rosalía, “Que No Salga La Luna”, um retrato animado de um casamento feliz que promote acabar em desgraça. Depois do prenúncio anunciado em “Pienso em Tu Mirá”, irresistível canção pop temperada com as tão presentes palmas flamencas, chega-nos logo de seguida um dos momentos altos do disco, a fantasmagórica “De aquí no sales”. O capítulo aptamente entitulado Disputa representa um ponto de viragem na narrativa, um abrir explosivo de um segundo ato que não deixa margem para dúvidas de que as coisas, de facto, azedaram de vez para a nossa pobre protagonista: enquanto Rosalía vocifera ameaças tão infelizmente reconhecíveis no meio da cultura de violência machista latina, como “isto dói-me mais a mim do que a ti”, as calorosas palmas são substituídas por violentos ruídos de motas, motores e ambulâncias, criando uma atmosfera verdadeiramente enervante. Mas mais desconcertante é ainda a segunda metade da música, na qual uma Rosalía fragilizada gane as vezes que a mulher se curva diante da mão alçada do vilão abusador.
Depois de “Malamente” e “Pienso en tu Mirá”, hinos de pop rebuçado, destaca-se o êxtase de “Di Mi Nombre” já para os finais do disco. No entanto, El Mal Querer não se faz apenas de êxitos de rádio, mas sim de uma complexa trama que vive de uma comoção dramática sem vergonhas. Exemplo primo do romantismo de Rosalía são faixas que precisam urgentemente de ser recordadas tanto ou mais do que os singles de El Mal Querer, momentos como a tragédia chorosa de “Reniego” ou a força bruta de “Maldicíon”.
Apesar de se agigantar sob o pano de um drama imenso, o disco termina numa nota positiva com o épico triunfo de “A ningún hombre”. O capítulo chama-se apenas Poder, e é precisamente uma sensação de poderio imenso que a monumental voz de Rosalía transmite enquanto, sozinha no silêncio, canta uma canção que mais se assemelha a um cântico de uma magnitude bíblica. O poderoso tema, no qual proclama, em jeito de lição de fim de história, que perante mais nenhum homem se curvará, encerra na perfeição a narrativa à qual dá um fim que demonstra que, depois de todas as adversidades que se abatem perante a fragilizada personagem feminina, esta é uma história que grita uma perseverança inimaginável. E, assim, El Mal Querer consolida-se a si mesmo enquanto manual de instruções improvável para uma nova geração de raparigas e mulheres que vasculham na música que ouvem de outras raparigas e mulheres um modelo filosófico para as suas vidas pessoais, que nem Tidal de Fiona Apple ou The Miseducation of Lauryn Hill, discos muito diferentes mas igualmente importantes.
El Mal Querer consegue o impossível de modos tão misteriosos que não nos atrevemos a questionar: não importa como é que os ritmos do flamenco se cruzam com o r&b ou como é que uma história escrita há oito séculos atrás nos consegue tocar por via da caneta e da voz de Rosalía. Mas mais vale não fazer perguntas: o que importa aqui é que El Mal Querer é daqueles discos que precisávamos urgentemente e que nem sequer sabíamos querer.