Os Interpol tornaram-se um dos assuntos mais delicados da música alternativa. Se, em 2002, o álbum de estreia Turn on the Bright Lights atribuiu-lhes um unânime estatuto estratosférico, em 2014, após quatro álbuns e com a saída do importante e irrepetível baixista Carlos Dengler, não há concordância em relação à qualidade do conjunto nova-iorquino na última década. Desde Our Love to Admire, a sombra da glória do primeiro longa-duração tem acompanhado a banda. Ouso a comparar a sombra do TOTBL àquela típica melancolia de romance moderno: a inevitável comparação de qualquer potencial novo namoro ao antigo grande amor que existiu nas nossas vidas. Constantes comparações, declarações saudosistas, negações e críticas. Terá sido Turn on the Bright Lights uma maldição que habituou mal os ouvintes e colocou a fasquia demasiado alta, ou terá sido uma bênção, que colocará sempre os Interpol no éden dos revivalismos do segundo milénio? Não interessa. É sensato afirmar que a fama dos Interpol vive do TOTBL? Não. Influenciaram, envelheceram, foram criticados, foram amados, fizeram projectos a solo, perderam um dos elementos fundamentais da composição e, talvez, até mais. Após uma longa mudez de estúdio enquanto saltavam de continente em continente, os Interpol decidem pintar um verdadeiro grito do Ipiranga: «Fuck the ancient ways», exclama Paul Banks. 17 anos depois do nascimento da banda, eis o difícil quinto disco: El Pintor.
Quatro anos após o regresso à Matador Records com o conceptual, orquestrado, atmosférico e negro álbum homónimo, El Pintor renova os votos com a típica sonoridade que marca a identidade «interpoliana», mas trilha um caminho diferente do habitual para chegar a essa tão familiar personalidade.
Em semelhança aos outros discos, este é de difícil digestão e, conselho de amigo, não desistam à primeira. Na primeira audição rapidamente identificamos os elementos indissociáveis de qualquer canção dos Interpol: uma sensualidade melódica dominadas pela guitarra arpejada, «reverberada» e ritmada de Daniel, as teclas que acolhem a guitarra e dão tom à atmosfera pretendida, o famoso timbre de barítono do Paul Banks e uma bateria irrequieta de Samuel Fogarino que, apesar de maquinal, sabe respeitar os silêncios e está apaixonada por contratempos e pelo duplo toque no prato de choques.
Sentimo-nos verdadeiramente em casa com «All The Rage Back Home», canção que arranca o disco. Apesar de começar com uma dinâmica rítmica preguiçosa a fazer lembrar «Next Exit», de Antics, enquanto nada no reverb sujo da guitarra, a faixa cresce até se transformar num dos mais orelhudos temas uptempo dos Interpol, remetendo para uma irrequieta «Heinrich Maneuver» com a carga emocional de uma «Pioneer to the Fall», todas de Our Love to Admire. É possível sentir a falta dos tiques de Carlos Dengler no baixo, que vincavam ainda mais a identidade de Interpol.
Consciente da importância de Carlos D. na composição, que juntamente com as ideias de Daniel Kessler eram a base das músicas de Interpol, Paul Banks assume as rédeas do baixo e dá uma abordagem que, apesar de diferente, ainda soa a Interpol. Paul tornou-se, sem pudor, num baixista que impõe linhas directas que, embora não tenham já muito balanço, é mais ousado no uso da distorção e mais colada à guitarra de Daniel.
E é quando a guitarra de Daniel se manifesta que mais nos lembramos do passado desta banda renovada. Talvez por, como já referiram em diversas entrevistas, quererem «dar focus ao rock ‘n’ roll», ou talvez seja uma consequência do (agora) trio nova-iorquino ser composto por dois guitarristas por natureza, é notável o relevo que a guitarra de Daniel Kessler ganhou. Em «Anywhere» e «My Desire», temas que impressionaram no Optimus Alive 2014, a sonoridade épica, a estrutura e o riff dedilhado berram desavergonhadamente a identidade da banda. Especialmente em «My Desire», canção que melhor mostra a qualidade de Paul Banks enquanto baixista (devido à sua precisão e constante cruzamento harmónico com a guitarra), expõe um crescendo até ao marcante refrão «Be my desire… I’m a frustated man» que não esquece a emotividade do álbum homónimo e do ambiente post-punk de TOTBL e Antics.
Apesar de ser mais liricamente directo, Paul não mudou. O imaginário que contempla o amor, a morte, a mudança e a fragilidade humana através de descrições palpáveis e explicitamente culpadas continua bastante presente. E até mais viva e confiante, com um expressivo Paul Banks que se aventura nos campos do falsete. Atrevo-me a denotá-lo como baritenor em algumas canções, como na «My Blue Supreme», onde podemos ouvir uma ambiência pesada acompanhada por um cantar sensível «Fake, it already captured me alone…», ou na monotonia dinâmica de «Same Town, New Story», que captou a nova-cadência preferida deste álbum.
Se em «Same Town, New Story» esta nova-cadência preferida se manifesta, nas canções que fecham o disco é bem evidente. Em «Tidal Wave», a minha predilecta, o falsete de «Oh, what a sweet serenade…» transborda toda a nostalgia que é, por sua vez, ampliada pelo baixo directo que trina, vezes sem conta, a mesma linha melódica, enquanto é acompanhada pelo dedilhado característico de Daniel. E se «Tidal Wave» é o último culminar de El Pintor, «Twice as Hard», juntamente com «Leif Erikson», é o melhor final que os Interpol já criaram para um disco. «Twice as Hard», introspecção post-punk de vinho tinto e lareira, embala-nos num caos requintado gerado pela progressão de acordes do piano e pelo ambiente instrumental que desmascaram as mazelas, ainda vivas mas mais maturas, do disco anterior. É algo novo mas com base no passado. Uma cara adulta mas lavada. E é fácil crer que é esta nova-cadência que descreverá melhor El Pintor. Esta nova-cadência aponta para o futuro e berra como o elemento mais natural na composição do (agora) trio formado por Paul, Samuel e Daniel.
Se tivesse que apresentar Interpol a alguém, El Pintor não seria certamente a minha primeira escolha. É um capítulo avançado desta epopeia complexa, escrita por quatro jovens de Nova-Iorque. Quem iria cometer a loucura de contar a Ilíada a partir da morte de Pátroclo? Tal como o «canto XVI» da obra de Homero, este disco pede um contexto: não é auto-explicativo. Conceptualmente é um álbum confuso, mas melodicamente é rico em ideias e vontade. O valor deste disco reside na promessa de continuidade: a forma de criar mudou, mas a forma respeita o todo, neste caso, a identidade de Interpol. Ouçam mais uma vez, repito. É como se estivéssemos a ouvir uma banda que nos é bastante familiar pela primeira vez, passo o paradoxo. São temas que precisam (e merecem) marinar dentro dos nossos ouvidos para entendermos a grandiosidade dos ambientes que procuraram pintar.
Mas as divisões continuarão e a saudade que Turn on the Bright Lights deixou ainda não foi ultrapassada por alguns. A banda está ciente disso, já o afirmaram por diversas ocasiões. Mas desta vez, após quatro anos, o quadro, que aparentava estar danificado, precisava de ser restaurado. Repintado. Toda a raiva voltou para casa. Continuar a caminhar sem se esquecerem das pegadas que deixaram para trás. Mesmo bairro, nova história. Os novos Interpol não deixaram de ser os velhos Interpol, apenas ousaram assumir que já nunca mais serão os mesmos. Se isso é bom ou mau, não interessa (ainda). É relativo.