Seja uma novela, um romance, um melodrama ou apenas uma tragédia do século vinte e um, reduzir a história de vida e carreira de Daniel Dale Johnston, o estranho homem por detrás de Hi How Are You, cassete auto-lançada em 1983 que Kurt Cobain deu a conhecer ao mundo na forma de uma t-shirt a meros classificadores narrativos é esquecer que, por detrás da epopeia, se esconde uma pessoa de carne e osso que canta e toca como tal.
Foi no longínquo verão de 1992 que Kurt Cobain, na altura provavelmente o guitarrista esquerdino mais célebre da óbrita terrestre, ostentou ao peito uma camisola branca que continha apenas um simples desenho de um simpático extraterrestre de olhos esbugalhados sentado em cima de uma inscrição convidativa, que lia apenas: “Hi, How Are You”. A peça de vestuário tornaria a reaparecer em entrevistas, concertos e sessões fotográficas, fazendo eclodir um burburinho discreto de “mas de onde é que isto veio?” Para muitos, é assim que começa a história do compositor, músico e artista visual americano Daniel Dale Johnston.
Mas não é uma história assim tão simples: Daniel Dale Johnston não era apenas um artista relativamente desconhecido ao grande público no qual Cobain pegara com o amor de quem o quer fazer conhecer o mundo. A trama, na realidade, é bem mais complicada, retorcida, confusa, feliz, triste, agoniante, ridícula. A grande epopeia de vida e carreira do homem criança que mal tocava guitarra e que cantava com voz de cachorrinho de cauda pisada possui um nível de intensidade dramática que, mais do que à telenovela de domingo, se assemelha a uma tragédia shakesperiana – nada nela é gratuito ou exagerado, sendo apenas um conto cru de uma vida que pendula entre tudo e nada.
Daniel Dale Johnston nasceu a 22 de janeiro de 1961, no seio de uma família modesta e extremamente religiosa, sendo de cinco filhos o mais novo e também, desde muito cedo, o mais problemático. No entanto, a sua infância foi dona de uma tranquilidade bucólica que só acreditamos existir dentro do mundo de filme dessas pequenas famílias americanas que criam os seus rebentos em pequenas cidades de nenhures, com as suas casas ladeadas de cercas brancas e a sua rotina encaixada no ping-pong de escola, aulas de música, desportos de equipa e igreja. Foi assim que Johnston cresceu, faltando-lhe todos os ingredientes que constituem o dito “artista torturado”. No entanto, já algo apodrecia.
Johnston fora uma criança e adolescente popular, criativo, e, acima de tudo, eufórico: consumido com um fascínio fora de precedentes com o Beatle mais insurgente, Lennon, também ele criava os seus motins de pequeno, preferindo as pinturas e as canções à escola, para aflição de um par de progenitores conservadores. Nascera obcecado com a ideia de vir a ser famoso com os seus desenhos ou as suas músicas: aprendera piano desde muito cedo e ganhara uma certa reputação enquanto artista (fosse lá para que lado fosse) do seu liceu.
Entrou na universidade, mas não se chegou a licenciar: serviu o curso na Kent State University, em Ohio, para travar conhecimento com Laurie, pela qual se apaixonou perdidamente e pelo qual continuou em cada canção que escreveu até aos dias de hoje. O amor adolescente na pós-adolescência despertou em Johnston toda uma ressaca emocional que precisava, urgentemente, de ser convertida em qualquer coisa: Songs of Pain (1981), a sua primeira cassete lançada publicamente, encontra-o diante do piano (o seu instrumento de eleição), cuspindo na sua característica voz aguda agruras quotidianas enroladas numa estática que denuncia a qualidade duvidosa com a qual a gravara (não admira que alguns dos seus fãs mais acérrimos o tenham mais tarde batizado como o pai do lo-fi). Seguem-se mais quatro lançamentos em quatro anos, testemunho à velocidade frenética com a qual Johnston facilmente transpõe tudo o que lhe passa diante dos olhos em pequenas cantigas, incluindo Yip/Jump Music, de 1983, que o tal Cobain de há pouco certa vez declarou como um dos seus discos favoritos. Mas é a vida de Johnston, que corre lado a lado com as cassetes que vai gravando e lançando, que nos revela os primeiros sinais de um conto memorável; acontece que, nesta altura, já tendo abandonado uma licenciatura que nunca iria concluir, trocando de casa de irmão para casa de irmão, acabou por se juntar a um grupo de feirantes que viajavam pelo país – e seria em Austin (na altura e ainda hoje uma das grandes capitais da música alternativa) que acabaria por aterrar. Como se fosse por acaso.
É também em Austin que chegamos a um capítulo crucial na carreira de Johnston: o lançamento de Hi, How Are You, um par de anos mais tarde imortalizada no peito de um mártir bem diferente da história da música. Talvez a modesta cassete tenha sido ouvida inicialmente apenas por umas dezenas de amigos de amigos que Johnston ia confiantemente chateando, mas quem a ouviu delirou. É compreensível porquê. Há algo de inexplicavelmente intoxicante na melancolia das melodias de bebé de Johnston, na sua voz mole e por vezes estridente, na qualidade quase ensurdecedoramente pobre da gravação. Algo de uma crueza que quase que dói ao ouvir, como dói tocar numa chama que arde verdadeiramente. E Johnston recebeu elogios iguais a estes sem grande vergonha, chegando a invadir uma emissão em direto da recém-nascida MTV pouco tempo depois, acabando magicamente por tocar para uma quantidade muito mais generosa de gente do que provavelmente alguma vez sonhara. Franzino, de cabelo escuro e olhos esbugalhados, apresentava-se agarrando nervosamente no microfone do pivô na entrevista pós-concerto: “olá, o meu nome é Daniel Johnston e trabalho no McDonalds. Esta é a minha cassete, Hi, How Are You. Escrevi estas músicas a meio de um esgotamento nervoso. Estou na MTV.”
A menção do “esgotamento nervoso”, no entanto, não fora nem inocente nem exagerada. Johnston sempre tivera uma personalidade aguçadamente peculiar, dado a colericismos, obsessões, picos de carga e poços de transtornos. No entanto, foi no dia 11 de setembro de 1986 que a sua lógica de comboio minimamente controlado descarrilou. Foi a meio de um concerto dos contemporâneos Butthole Surfers que um ácido lhe caiu no estômago como um pedregulho e lhe fez fossas impossíveis de cobrir na personalidade. Pouco tempo depois, relatos preocupados começavam a surgir de quem com ele se cruzava: Johnston criara uma obsessão com a figura do Diabo, dormia todo o dia, não produzia. O ano era 1987. O seu “ano perdido”. Como viriam a ser, infelizmente, tantos outros.

A sua humilde fama levou-o a Nova Iorque, terra na qual não tardaram a brotar do cimento nomes interessados em trabalhar com a figura, nomes estes que tinham vindo a integrar projetos como Sonic Youth ou os Velvet Underground. Mas o nosso mundo já tinha perdido Johnston para outro. A meio de concertos, era aplaudido por pequenos aglomerados de gente que não tardavam a encolher-se desconfortavelmente nos seus lugares quando, a meio de músicas, as lágrimas começam a jorrar descontroladamente dos olhos vidrados do cantor enquanto gritava sobre Satanás. Pouco tempo depois, foi levado a tribunal por um incidente que envolveu uma madrugada, Johnston, uma idosa e os seus tornozelos estilhaçados, provocados por uma queda de um segundo andar ao qual apenas o músico assistiu, mas que, segundo o próprio, foram provocados por “demónios”. Johnston nascera e crescera com fábulas infernais plantadas na psique. Quando o juízo estalou, foram as lembranças menos agradáveis da sua educação católica que tomaram conta dele. “Existe, com certeza, um diabo”, declarou certa vez: “e ele sabe o meu nome”.
Depois de algum tempo na grande cidade, na qual de dia ia cultivando uma pequena celebridade graças à circulação de mais umas quantas cassetes e de noite dormia num abrigo de vagabundos, foi encontrado pelos amigos e família preocupados e imediatamente internado e medicado: durante o seu tempo hospitalizado, enviou ao manager, Jeff, gravações de voz com pedidos absurdos para quando lhe fosse dada alta – queria reunir os Beatles para o acompanharem em digressão e escrever jingles para refrigerantes. O máximo que lhe foi dado foi a promessa de um regresso em grande aos palcos, no festival South By Southwest e no Austin Music Festival em 1990.
O dia em que tudo deixou de correr bem para Johnston foi quando, numa viagem de avioneta com o pai, um episódio maníaco tomou conta do seu espírito e de repente era Casper, o fantasminha brincalhão, e o alarido provocado dentro da máquina levou ambos a despenharem-se quase mortalmente. Sem uma única cicatriz para exibir como marca de batalha, o pai de Johnston reconta o episódio em entrevista como um homem cuja vida promete uma guerra que nunca chegará a um armistício, enxaguando as lágrimas fartas que lhe escorrem pela barba já esbranquiçada com um guardanapo ensopado. A esposa fita o vazio em silêncio. O que se poderia fazer?
Johnston foi hospitalizado mais uma vez numa ala pisquiátrica nos primeiros anos da década de noventa. Não chegou a assistir ao momento no qual uma nova leva de miúdos é apresentada à sua cassete via indumentária de palco do guitarrista esquerdino mais célebre da órbitra terrestre (nem sequer conheceria os Nirvana). Mas Jeff, encantado e re-encantado vezes sem conta com a magia inegável das cassetes já gastas do seu cliente, acreditava numa última oportunidade. Através da editora Elektra, fez passar a Johnston um dos mais bizarros contratos discográficos da história da música: um contrato musical com cláusulas sobre comprimidos, esquizofrenia, médicos e hospitais. Johnston hesitou e acabou por recusar. A razão? A Elektra era a casa dos Metallica, que acreditava veemente serem satânicos e perigosos. Acabou por cortar laços com Jeff, do qual suspeitou conspiração. O manager desistiu.
Finalmente, surge a oportunidade final: Fun é lançado em 1994 pela Atlantic Records. Vende apenas cinco mil cópias.
Johnston nunca deixou de escrever e de lançar música, como se fosse esse o seu oxigénio que permite continuar vivo, ainda que pouco. No início do século, regressou à pequena casa dos pais, que se organizavam entre eles para gerir a difícil profissão a tempo inteiro que é cuidar de uma criança de cinquenta anos. Johnston mal cabia naquela casa, e vê-lo curvar toda a sua obesidade medicada sobre o piano em The Devil & Daniel Johnston (documentário de 2005, realizado por Jeff Feuerzeig) dá uma pena que costumamos reservar para elefantes enjaulados. Continua a balbuciar como um menino e a cantar ainda mais como um: na sua terra natal, acabou por se cruzar com um grupo de jovens tatuados que lhe idolatravam e que com ele iam tocando umas canções novas na guitarra e na bateria, sob o nome de “Daniel Johnston & The Nightmares”. “Sempre que leio sobre o Daniel, comparam-no ao Brian Wilson”, afirma um, apanhado pelo documentário, de cerveja em punho. “E eu adoro os Beach Boys, mas acho o Daniel muito melhor.”
Johnston continua a dar concertos e chega a saltar para fora da América sob o olhar vigilante de quem agora dele cuida, o irmão Dick Johnston (os pais não lhe sobreviveram, indo ela em 2010 e ele em 2017). Tem 57 anos. É saudável, mas os seus olhos têm gravada para sempre a expressão amedrontada de quem morreria de susto com o desligar de um interruptor. Ainda não sabe tocar guitarra. Em 2012, completou um sonho de criança e lançou o seu primeiro livro de banda-desenhada. Dois milhões de pessoas já ouviram o seu tema mais célebre no Youtube e reunem-se nos comentários para declarar o seu amor imensurável pelo fenómeno mais inexplicável, e, simultaneamente, mais bonito e compreensível da história da música lo-fi. Chama-se “True Love Will Find You In The End”. É uma história de esperança. A história de Johnston, ainda não sabemos muito bem qual é. Mas não é um mito, ou uma telenovela, ou uma epopeia. É real. Tal como a sua música.