Damas, Zé dos Bois, Banco, Desterro, Maria Matos, SMUP, etc.: se a nossa noite passar por algum destes sítios, o mais provável é que João Castro lá esteja. Seja como melómano dedicado, seja como uma das caras da promotora Nariz Entupido, João marca presença quase constante nesta esfera da vida cultural lisboeta, embora sempre discreta. O enorme respeito pela música e a vontade constante de descobrir e querer ser desafiado por novas experiências levam-no a manter este nível de consumo musical. Esta combinação de fatores levou-o, mais recentemente e de uma forma muito natural, a envolver-se diretamente na programação cultural da capital. «Normalmente é assim, eu estou lá e depois as coisas aparecem. É um bocado como a Nariz Entupido, como o coletivo do Estrela Decadente… Eu estou lá, ajudo, e depois perguntam-me “não queres fazer parte?” e eu “ok, ‘bora lá!”».
Sentado num banco em frente à Faculdade de Belas Artes, João Castro relata com entusiasmo um percurso desde cedo ligado à música e ao interesse por esta arte – “sempre como espectador e comprador”, ressalva. Aos 8 anos muda-se de Lisboa para o Porto, devido ao emprego do pai. É na Invicta que começa a sua descoberta musical – que, até hoje, é uma viagem inacabada. Contudo, é ainda na capital que começa a cultivar o seu amor pela música: “o meu primeiro concerto é para aí aos 5, 6 anos, quando o meu pai me leva à Gulbenkian. Não me lembro que concerto específico é que foi, mas lembro-me de estar no Grande Auditório com ele.”
Aos 13 anos, Tarântula, uma banda de hard rock/metal de Vila Nova de Gaia, foi o seu primeiro concerto “a sério”, organizado na escola onde estudava. Foi a partir daqui que a sua educação musical se tornou algo progressivamente mais metódico e que, até hoje, faz por enriquecer. Contudo, formar uma banda nunca esteve nos seus planos.
“Sempre fui um bocado duro de ouvido, nunca tive particular interesse em tocar. Além disso, sempre gostei mais de ouvir e pesquisar do que depois entrar naquela fase de ser músico. Ainda por cima, a primeira experiência [ao vivo] foi traumática. No final da 4ª classe havia daquelas festas em que o professor decidiu fazer a orquestra da turma. Obviamente eu fiquei relegado para os lugares de despromoção (risos), em que só tocava 8 segundos e o xilofone era uma coisa tipo «tac-tac-tac», só que eu distraí-me e entrei tarde, então desde aí nunca mais (risos). Nunca tive grande propensão e depois o metal tinha a coisa das bandas e era sempre «ah, tu vais para baixista, tu vais para baterista, e depois temos de fazer o logotipo quase ilegível». Então, a parte da música sempre foi muito mais como espectador e comprador.”
Através dos Iron Maiden, banda que o primo lhe mostrou, começou a ouvir mais metal. Entre sorrisos, João recorda com carinho as excursões organizadas pelos metalheads do Porto (onde as cenas post-punk e gótica tinham muito maior adesão) para ir a Lisboa ver concertos. “Maiden foi a primeira banda de quem eu comprei as coisas e queria conhecer mais e é interessante porque ia com a malta em excursões, gastava o meu dinheiro, mas acabei por gostar muito mais de Anthrax do que Maiden, de Fudge Tunnel do que Sepultura… Vim de propósito com meia dúzia de malucos num autocarro para ver o primeiro concerto dos Ratos de Porão no Incrível Almadense. Depois, mais tarde, para ver os Painkiller – que era o projeto do John Zorn com o Bill Lasswell e o Mick Harris (dos Napalm Death) –, e aí vim sozinho. E claro, também vim aos Metallica com Suicidal [Tendencies] por causa dos Suicidal.”. Estas viagens à capital contribuíram muito para fomentar uma cultura de ir a concertos que João, até hoje, não dispensa.
A partir dos Fudge Tunnel, João conhece a música dos Godflesh e de John Zorn “e todos os seus 1001 projetos”. Este afastamento progressivo do metal mais tradicional coincide também com o surgimento da XFM, rádio onde o programa Crónicas do 4º Mundo, de Ricardo Saló, o começa a levar para esferas mais experimentais da música. O projeto de Bill Lasswell com Peter Brötzmann é apenas um dos muitos que Saló lhe dá a conhecer.
“Aquilo do metal, do mais rápido, mais forte, decididamente não era aquilo que eu procurava e fui investigando outros projetos que se encaixavam mais naquilo que estava a ouvir. Curiosamente, nessa altura começo a descobrir que, no Porto, há uma onda muito interessante a nível de lojas de discos em que a compra se faz através de catálogos. Então a minha educação musical – não havia internet, claro – faz-se, ao contrário do metal (que funcionava muito por maquetes), à procura de catálogos. Catálogos internacionais, em que mandava vir com amigos para ficar mais barato, ou catálogos nacionais, como havia com a Contraverso, a Ananana e a Simbiose. No Porto, havia com a Matéria Prima – que hoje é a única que se mantém –, do grande Alvinhas, e com a Áudio, que era a loja de discos mais pequenas que podias imaginar”.
A XFM e as idas às lojas de discos acabaram por ser as grandes escolas de João nesta fase da sua vida. Foi por volta desta altura que conheceu Ornette Coleman e, a partir dele, começou a entrar mais a fundo no jazz, género que ainda hoje tem um lugar muito especial no seu coração melómano. A partir daí, dedica-se a descobrir quer a onda mais free do jazz quer clássicos como Miles Davis ou Herbie Hancock. O Jazz em Agosto, festival da Fundação Calouste Gulbenkian, foi outro grande responsável pelo impacto deste género em João Castro. “Sempre fez muito sentido para mim: pela linguagem, o facto de não haver aquela coisa da banda fixa, que me chateava no metal… Basta ver o caso do [baterista Gabriel] Ferrandini: ora toca com estes, ora toca com aqueles, às vezes toca a solo e vai-se integrando sem nunca perder o seu cunho pessoal – e isso, no jazz, acontece desde sempre.”
Mais tarde, a cena chillout e a eletrónica vinda de Viena foram particularmente importantes numa fase da sua vida. No final dos anos 90, João ingressa no curso de Geografia e, perto do seu término, faz Erasmus em Valência. Associada à sua vivência da cidade espanhola, a música de Kruder & Dorfmeister ou de Fila Brazillia é a banda sonora de muito boas memórias de tardes passadas na praia.
“Havia muita malta austríaca habituada a dar festas chillout e depois é engraçado: Valência é praia e nós estávamos a viver a 5 minutos de lá. Havia um bar que era o Bananas que tinha uma casa na árvore. Então, domingo às seis, sete da tarde eram tardes de chillout… havia massagens, havia comida, os austríacos passavam chillout e o dono do bar ficava com o dinheiro das bebidas.”
Depois de regressar a Lisboa, a música mantém-se uma constante na vida de João. Torna-se um habitueé de certos espaços culturais, como, por exemplo, a Galeria Zé dos Bois. Em tom de brincadeira, conta que, pouco antes da nossa conversa, tinha encontrado Sérgio Hydalgo (responsável pela programação da ZdB) e que este, ao vê-lo a aproximar-se dissera “Olha o nosso sócio número um!”.
Contudo, a entrada para a Nariz Entupido alterou os seus hábitos de consumo musical: “estou mais atento a coisas que não estava, vou picar os bandcamps, ver o que é que há”. A própria ida a concertos transformou-se, para João, num processo mais analítico do que era antes: “acho que a grande mudança nestes quatro anos e meio é a forma como vejo o concerto. Por obrigação, vou ver o que anda cada um a fazer e depois pergunto-me «o que é que podemos acrescentar a isto?» A Nariz, sozinha, não existiria, sozinha não vai fazer nada nem nenhuma grande modificação. No entanto, se pudermos ter um discurso em que possamos dizer «nós conseguimos acrescentar isto» as coisas correm logo melhor.”
A reflexão sobre o tipo de contributo que a Nariz Entupido pode oferecer no âmbito cultural lisboeta é apenas uma das muitas componentes do trabalho de João no seio desta promotora. No entanto, o exercício de análise do espetáculo não é nada de novo para ele – afinal João já escreveu para a Umbigo e a Música em DX e, atualmente, trabalha com a Tracker, a Threshold Magazine e a Deus Me Livro. Ainda assim, visto que é um dos membros principais da Nariz, esta tornou-se uma das partes mais importantes da sua vida.
“Até aqui chegámos!”
João nasce oito meses depois da revolução, em dezembro de 1974, em Arroios. Foi o único da sua família a nascer na capital e a vivência de liberdade do pós-25 de abril em Lisboa tornou-se fulcral para moldar a sua visão do mundo. “Nunca me passou pela cabeça um período em que me privassem de algo como ir à praia com os meus pais!”. Esta experiência transparece muito na forma como hoje vê o futuro “desmaterializado” da Nariz Entupido.
“Só faz sentido enquanto a Nariz for uma plataforma totalmente aberta, para que receba contributos de Lisboa e de fora. Identificamo-nos com a malta da Favela (no Porto), dos Jardins Efémeros (em Viseu), da Zigur (em Lamego) e com outra malta que mostra uma vontade intrínseca de fazer qualquer coisa, como em Évora, no Algarve, em Vila Real e Bragança. A partir daqui, é tentar fazer uma rede informal com estes projetos que estão a surgir e constituir um conjunto em que um concerto pode ser só um concerto, em que um concerto pode misturar um lado mais performativo, um lado mais visual e, daí, talvez catapultar para outra coisa, como, por exemplo, edição.”
Já lá vão quase cinco anos desde que João passou a integrar a equipa da Nariz Entupido. Apesar disso, já só entra na segunda encarnação da promotora, que tinha começado em 2009, mas teve um hiato entre 2011 e 2013. O impulso que levou à criação desta organização foi o “gosto de querer participar, através da organização de concertos, na vida cultural de Lisboa”, explica João.
“O propósito [da Nariz] é diversificar e apresentar projetos em que nós acreditamos pela sua originalidade, pela capacidade que têm de apresentar alguma novidade, alguma abertura para outro tipo de sons que, se calhar, a maior parte das pessoas não está habituada ou com que nós nos identificamos. Ao longo destes anos, fomos apostando na organização de concertos de artistas dos mais variados estilos, mas que apresentavam sempre estas características.”
Se é verdade que, recentemente, as apostas da Nariz Entupido têm caído mais na música experimental, este não é de todo o seu foco: “não quer dizer que tenha de haver uma canção estendida até ao limite e com a dissonância ao máximo, que percorra uns 20 minutos sem tu perceberes muito bem para onde é que vai…”. Por trás da curadoria da Nariz Entupido, João revela que estão apenas duas preocupações: se a promotora se identifica com o caminho do artista e, se for esse o caso, se é possível criar algo diferente do que determinado músico faria noutro sítio: “criar a novidade neste aspeto, de permitir aos artistas eles poderem ter outras condições que, se calhar, num concerto normal não teriam”.
Apesar disso, a experimentação está muito ligada aos eventos organizados por esta promotora: “gostamos de descobrir como é que resultaria aquele concerto organizado por nós em determinado espaço, como é que depois nós o conjugaríamos – como foi o caso do Steve Hauschildt – com outra pessoa portuguesa que possa complementar o concerto – neste caso foi o Jari [Marjamaki]”. João revela que é neste aspeto que a Nariz procura traçar a sua linha identitária: “queremos fazer pequenos cruzamentos que sejam uma alternativa à grande qualidade e oferta que já existem em Lisboa”.
Como em qualquer associação deste género, as maiores dificuldades da Nariz Entupido passam pela vertente económica. O pagamento aos artistas, aos locais onde decorrem os concertos, o aluguer de material e a impressão de cartazes acabam por comportar custos, por vezes difíceis de cobrir. Tratando-se de uma organização sem fins lucrativos, João revela que o seu objetivo neste momento é atingir uma situação financeira mais estável: “Não quer dizer que cada concerto tenha de dar 3.000€ de lucro (risos)! Mas também não tem que dar o contrário, não tem que dar os 3.000€ de prejuízo”.
O público também é outro dos pontos que a Nariz gostaria de melhorar, confessa João: “obviamente que gostaríamos de ter sempre um público cada vez em maior número, mais desperto para as nossas propostas… As que nós estamos a apresentar agora de momento se calhar são mais arriscadas do que eram nos anos anteriores”. Contudo, também reconhece que Lisboa mudou muito e, neste momento, está muito mais recetiva a sonoridades diferentes e atribui isto “ao trabalho muito meritório de associações, como a ZDB, a Filho Único, o Desterro e outras salas que abriram mais recentemente como o Damas ou outras mais antigas como o Sabotage e o Lounge – e, pronto, o Musicbox nalgumas noites (risos).”
Ainda assim, não descura o contributo da Nariz neste trabalho de alargar o espectro de sonoridades mais facilmente aceites pelo público lisboeta, embora nunca o sobreponha de modo algum ao trabalho de outros agentes culturais. Aliás, em relação ao trabalho da Nariz até à data, diz mesmo que “a melhor retrospetiva é pensar no futuro sinceramente. Até aqui chegamos (risos)! E isso é um ato de resistência que também é importante em todas as coisas que fazemos – ou pelo menos, pela nossa experiência, a nível da música. Mas também temos de ter a lucidez para pensar que se calhar há um momento em que não vamos poder andar mais com isto e não há mal nenhum nisso”
Uma história de respeito, um futuro (em) aberto
A relação duradoura que João estabelece com a música perdura pela mesma razão que qualquer outra relação: porque é fundada num enorme respeito. “Estás tão ligado à música que queres… Eu não vou dizer retribuir porque isso é um bocado estúpido, mas trata-la com respeito. Um concerto não é só mais um concerto não é uma instastory, é um concerto! É para ti, é para ires buscar qualquer coisa!”
Claro que isto acaba por ser algo que se transfigura e materializa no trabalho que João desenvolve com a Nariz Entupido – e é algo que sente em comum com os seus pares. “Vais falando com a malta que gosta mesmo de música e transparece um grande respeito por ela. Tu sabes que ela é uma parte importante da tua vida e que tu, não sabendo tocar e não tendo atrevimento nenhum para tocar, pelo menos, enquanto pessoa que pertence a uma associação como a Nariz Entupido, deves criar todas as condições para dar o devido respeito aos músicos.”
A título pessoal, João sabe bem como gostava que fosse o caminho da Nariz daqui para a frente. Sempre ligado à desmaterialização já em curso, a visão que tem para o futuro da promotora é de uma abertura constante.
“Temos de ser esta plataforma que sozinha pode agregar um conjunto de pessoas, em grupo pode agregar outro maior, autónoma, mas sempre muito aberta. Eu gostava que fosse cada vez mais aberta e sujeita a outras colaborações que podem durar mais ou menos tempo e que tanto podem surgir em forma de edição – que era o que gostaríamos de fazer com Carga Aérea – como podem surgir em projetos pontuais, como foi agora com o Indie, com o concerto do Ferrandini e do Ricardo Martins sobre o Milford [Graves].”
[mais informações sobre o concerto de Muyassar Kurdi aqui. Pode acompanhar a programação da Nariz Entupido no Facebook da promotora.]