Karen Dalton nasceu, viveu e morreu na sombra de um mundo que nunca lhe prestou atenção, até ao momento em que um dos seus mais notáveis colegas de carteira, que viu de perto a sua jornada falhada pelo mundo da música folk americana, lhe teceu elogios que viraram cabeças e ouvidos. Mas ainda assim, parece infelizmente destinada a referências que para sempre lhe colocarão à frente ou atrás dos seus semelhantes e nunca por si só.
Karen Dalton foi apelidada por muitos como a “Billie Holiday da folk”. Podíamos começar assim este artigo, num universo alternativo qualquer. Mas, na verdade, terá sido por poucos, porque ousada comparação exigiria certamente o encostar do ouvido ao pouco trabalho que lançou em vida, algo que a grande maioria da população nunca chegou a fazer. A sua voz característica tingia de uma melancolia sóbria o folclore que cantou em vida, artefacto histórico de um sabor musical particularmente americano que morreu algures no século passado. Mas quando a própria desapareceu no final do mesmo, em 1993, vítima de HIV (alegadamente sem-abrigo, boato esse mais tarde desmentido) com a tenra idade de 55 anos, teriam sido poucos aqueles que poderiam ter traçado qualquer comentário sobre o seu instrumento principal por contato direto com o mesmo. Uma das poucas pessoas que o fez foi Bob Dylan. Na sua autobiografia de 2004, Chronicles: Volume 1, escreveu: “A minha cantora favorita era a Karen Dalton. A Karen tinha uma voz como a Billie Holiday e tocava guitarra como o Jimmy Reed…”. Quando um músico morre e deixa para trás algo que é recuperado pelas palavras do único Prémio Nobel da música popular moderna, sabemos que estamos diante de algo especial.
Mas descortinar a fachada mitológica de Karen Dalton é uma tarefa árdua e frustrante: os poucos retratos que nos deixou revelam uma mulher-rapariga de feições rudes, franja mal cortada e sorriso desdentado longe do mito de fadinha encantadora da espécie fêmea da folk. Era frequentemente fotografada com os dois instrumentos de estimação encaixados no colo – a guitarra acústica de doze cordas e o banjo. Mas a sua ferramenta mais preciosa era a sua voz, grave e nasalada, portadora de uma autoridade robusta que lhe carregava as canções relativamente simples, oriundas da escola da música folclórica americana da década de sessenta da qual fizeram parte também nomes como Dylan ou Neil, de um peso que poucas vozes femininas do género conseguiriam emular. Em vida, terá editado apenas dois discos: It’s So Hard to Tell Who’s Going to Love You the Best, em 1969, e In My Own Time, em 1971. Não gostava de ser gravada, alegadamente (o seu primeiro disco só foi concluído porque lhe mentiram e afirmaram que, ao invés de uma gravação, participava num ensaio à porta fechada); cantava para se ouvir no momento. Mas não seria possível fazê-lo durante muito mais tempo depois do seu último lançamento, sendo que haveria de morrer pouco mais de duas décadas mais tarde, com a mesma descrição de raposa com a qual viveu e tocou em vida.
Nascida no verão de 1937, no Texas, passou a infância num rebuliço de circo, sendo criada entre Oklahoma, Stilwater e Kansas, acabando por se instalar no início da década de sessenta na célebre Greenwich Village, em Nova Iorque, terra à qual os habitantes se referem carinhosamente como simplesmente “The Village”, como se fosse a única vila que existisse no planeta terra. Parece um pouco ingénuo, pretensioso, talvez, mas, na altura, para quem vinha ao mundo com o propósito divino de cantar canções nascidas e criadas no solo americano, esta crença absurda parecia criar contornos de realidade. Sempre fora um epicentro explosivo de cultura: desde a deslocação de imigrantes e escravos-libertos para a região no início do século XX, que com eles levavam novos olhares sobre a música, literatura e as artes, à década de cinquenta, na qual se transformou rapidamente na vizinhança predileta da geração beat, até à década de sessenta, altura em que uma recém-divorciada Karen Dalton sobre a qual ainda muito pouco sabemos chega à terra onde vivia Dylan e Ginsberg com vontade de cantar para quem a ouvisse.
No entanto, nem em Greenwich nem em outro lado nenhum conseguiu Dalton o sucesso que o mundo parecia disposto a dar a uns quantos seus colegas que apanhavam boleia de um recém reinstaurado interesse público na canção folclórica americana. Dalton não era uma cantora assim tão pouco conhecida no seu meio – os seus dotes para o banjo e guitarra e o seu timbre característico já habitavam conversas casuais dos locais por onde passava – mas o dinheiro sempre fora escasso e nunca conseguiu atingir esse ideal sonhador de “viver da música”: ganhava pouco recebendo mal com o ingrato trabalho de animar as noites de bêbados em duvidosos bares noturnos. Um dos proprietários de um desses tais bares – um mítico espaço apelidado “The Attic” em Boulder, Colorado, por onde passaram de rajada nomes como David Crosby ou John Philips (dos Mamas & The Papas) – Joe Loop, travou conhecimento com a franzina cantautora texana no início da década de sessenta. Tornou-se próximo de Dalton e do seu segundo marido, Richard Tucker, também ele um vulto da folk cujo nome sugere ainda menos resultados no Google do que o da sua esposa. Gravou-os, um ao outro ou em dueto, frequentemente. Foi um dos poucos sortudos que conseguiu trazer até ao século XXI um registo sonoro ao vivo de Dalton, Cotton Eyed Joe, lançado em 2007 através da Megaphone Music. O registo funciona como uma espécie de enciclopédia para quem queira conhecer o (infelizmente) pouco que há para conhecer de Karen Dalton: um disco duplo, gravado em 1962, altura na qual a cantora e Tucker viviam numa pequena chalé sem eletricidade com a filha pequena, em Boulder. Entre os temas, contam-se versões de nomes como Billie Holiday, Jimmy Cox ou Woody Guthrie, assim como a ocasional reinterpretação do cancioneiro tradicional americano. Nem um único original. Mas, de certa forma, Dalton nem precisava de perder tempo a escrever as suas próprias músicas: a intensidade comunicacional com a qual agarrava nas dos outros tornava-a, a todos os aspetos, uma ladra musical profissional, tornando-as mais suas do que qualquer outra coisa.
A tentativa de mitificar Dalton quando o seu nome voltou à baila no início do século presente quis transformá-la numa mártir depressiva, como parecem ter que ser todos os pobres coitados perdidos nas catacumbas da história da música. Mas Loop, que a conheceu de perto e que chegou a viver na pequena chalé da família de Dalton, garante que não. A sua voz forte não era apenas um disfarce para a sua aparência fraca. Dalton era uma mulher robusta e obstinada cuja busca incansável pelo sucesso, que nunca lhe trouxe resultados, nunca a deixou de frustrar, e o seu feitio teimoso também lhe colocava tropeções pelo caminho (chegou a ser expulsa de um palco onde deveria atuar por ter demorado demasiado tempo a afinar a guitarra). Era, simplesmente, portadora de duas características muitas vezes inconciliáveis com o sucesso: perfeccionista e terrivelmente tímida, petrificada com a noção de cantar os seus próprios temas e mesmo de gravar temas dos outros para desconhecidos a ouvirem a cantar fora dos bares onde tocava. Depois do fraco sucesso de In My Own Time, em 1971, foi desistindo aos poucos: apesar de beber pouco ou nada de álcool, afundou-se lentamente nos psicadélicos antes de migrar para categorias mais pesadas, acabando por morrer de complicações relacionadas com o vírus HIV a 18 de março de 1993 tão longe das bocas do mundo que durante anos circulou o boato que tinha acabado sem família, sem casa, e sem vida nas ruas de Nova Iorque. Na verdade, faleceu no sofá de um amigo que a albergava e que demorou alguns momentos a aperceber-se que Dalton não se encontrava a meio de um sono profundo, mas sim morta. Não avisou ninguém do seu desfecho. Talvez porque, na altura, não valia a pena.
Seria necessário esperar o volver de mais umas quantas primaveras para que se começasse finalmente a falar de Karen Dalton. Já se encontrava há muito enterrada quando Dylan a recordou com elogio. Ao mesmo tempo, um fenómeno curioso (e, aparentemente, cíclico), brotava no coração dos Estados Unidos da América: uma nova geração voltava a descobrir o cancioneiro folk do seu país, desta vez readaptando-o para uma vasta gama de variedades sonoras próprias: fala-se, claro, do surgimento do chamado movimento freak-folk no início dos anos dois mil que trouxe à baila novos nomes como Devendra Banhart, Joanna Newsom e Animal Collective. Karen Dalton não era uma referência óbvia, sendo que seria difícil encontrar canções mais agarradas a unhas e dentes à tradição da qual estes novos nomes se pretendiam momentaneamente afastar. Mas Vashti Bunyan, sua contemporânea britânica de voz e cantigas bem mais suaves, era. E começa-se, de repente, a falar de Karen Dalton por arrasto (ser nomeada por Dylan como a sua cantora favorita por volta desta altura também não doeu).
A verdadeira tragédia de Dalton foi ter sempre vivido a sua música através dos outros: ninguém saberia o seu nome se não aparecesse ao lado das palavras de Dylan, da figura de Bunyan ou até mesmo da comovente homenagem que Joanna Newsom (mais uma mulher dona de uma voz só sua) lhe teceu em Divers, de 2015, pedindo emprestada uma das músicas cantadas por Dalton, “Same Old Man”. Mas ler sobre Dalton já não é suficiente, tal como ler sobre Mozart ou Van Gogh não chega para saciar a sede de conhecer aquilo de que se fala se nunca se escutou um dos seus requiems ou se olhou para um dos seus girassóis. É urgente conhecer Karen Dalton sozinha, como sempre se apresentou ao mundo, armada de uma guitarra, de um banjo, e de uma voz da qual não se esquece tão facilmente. Deixemo-la existir, apenas.