Visions é um estranho caldeirão, os Kraftwerk e a Enya apanhados na cama.
A última década foi pródiga em grandes autoras pop, todas defendendo aguerridamente a sua autonomia artística: Lana del Rey, Lorde e Billie Eilish lutando pelo direito à melancolia; Solange e Janelle Monáe reinventando o R&B; Angel Olsen e Courtney Barnett derrubando muros no indie; FKA Twigs e Grimes grafitando já o futuro. De toda esta colheita, a canadiana Grimes foi a que levou mais longe a ideia de autoria no feminino, controlando todas as fases do processo criativo: canções, produção, grafismo, vídeos (tudo, portanto).
Grimes já havia gravado dois álbuns esquecíveis que ninguém ouvira, mas a 4AD detectou ali qualquer coisa, oferecendo-lhe um contrato em troca de um terceiro disco (com um prazo demente para ontem). Não desperdiçou a oportunidade. Fechou-se no seu quarto e de lá não saiu enquanto Visions não ficou pronto. Foram duas semanas febris em frente ao computador, programando loops de dia e de noite, enfardando anfetaminas para o corpo não ceder. Às tantas, entrou numa quase-transe, a música parecia que se escrevia sozinha, os seus demónios dançando no negrume do quarto.
A aclamação crítica foi imediata: chegou a porta-voz da geração internet, escreveu-se (a primeira com um acesso instantâneo a toda a música, agregando passado e presente na mesma massa informe). Visions é, de facto, um estranho caldeirão, os Kraftwerk e a Enya apanhados na cama (electrónica-sci-fi-outrora-futurista encontrando-se com vozes-etéreas-promoção-na-rituals). No papel não faz qualquer sentido mas nos auscultadores resulta, não nos perguntem porquê (a música tem razões que a razão desconhece).
Por muito que as batidas quase motorika (naves espaciais aborrecendo-se na imensidão do espaço) sejam encantadoras, o segredo de Visions está na voz de Grimes; ou melhor, nas vozes, já que se desdobra em várias melodias simultâneas e dissonantes, um coro psicadélico-new-age ecoando dentro da cabeça de um louco. Grimes foge à convenção verso-refrão, preferindo os loops infinitos à Panda Bear, ideais para as suas (des)harmonias vocais.
As vozes estão sempre encharcadas em reverb, nebulosas como um nevoeiro irlandês (Cocteau Twins para quem odeia guitarras). O timbre é agudo como o de uma boneca insuflável japonesa, na fronteira entre o falsete natural e a manipulação chipmunk (metade mulher, metade máquina; um vislumbre do século que há-de vir). É na celebração do artificial e do sintético que Grimes faz a sua pop; a tecnologia não como uma ameaça distópica mas como um paraíso de possibilidades infinitas. A geração smartphone a jogar finalmente em casa.