Em 2008, para surpresa de todos, Manel Cruz decide lançar o que é, até hoje, a sua obra mais inclassificável.
É difícil imaginar no que é que Manel Cruz estava a pensar quando, em 2008, decide lançar o primeiro e, até agora, único disco de Foge Foge Bandido. Com os Ornatos Violeta mortos e enterrados (e ainda longe das múltiplas reuniões que se seguiram na década seguinte) e Pluto em aparente hiato, a expectativa residia num possível disco a solo daquele que era então dos maiores escritores de canções da sua geração. O que saiu foi um disco duplo de 80 faixas, repleto de experiências sónicas, brincadeiras e, claro, canções. Tudo isto num livro de 140 páginas com ilustrações, fotos e colagens para cada uma das músicas e para o disco em geral.
Gravado entre 1998 e 2007, O Amor Dá-me Tesão / Não Fui Eu Que Estraguei pertence ao panteão de discos duplos em que o limite é a imaginação, ao lado do prototípico White Album, Uncle Meat, Tusk, entre outros. São o tipo de álbuns cujas estruturas caóticas e expansivas se prestam aos hábitos de escuta modernos, assemelhando-se às playlists que constituem, discutivelmente a forma de ouvir música mais comum nos dias que correm.
No entanto, um projeto desta dimensão não pode ser avaliado pelas suas partes individuais. Vinhetas como “Casal Boss”, “Discussão Canina” ou “Passaroco Motoqueiro” não se podem classificar como canções ou música, pelo menos num sentido mais estrito e convencional. Estes pedaços sonoros/musicais servem simplesmente para temperar a experiência, momentos de irreverência que nos obrigam a prestar mais atenção ao disco, filtrando o ouvinte que procura apenas aquilo que ele espera que Manel Cruz lhe dê: as canções orelhudas escritas numa linguagem muito própria e com a sua perspetiva única.
Não que elas não existam: “Borboleta”, “Tu Não Tens de Mudar” e “Ninguém é Quem Queria Ser” são canções de primeira categoria e que, se apresentadas fora do contexto deste álbum, não deixariam vislumbrar a loucura labiríntica na qual elas realmente se inserem. Algumas delas, como “A Cisma”, “Falso Graal” e “Canção da Canção Triste” ainda figuram nos concertos do músico.
Qual a distinção conceptual entre os discos? É difícil dizer. Umas contagens rápidas permitem-nos determinar que a maior parte das canções convencionais encontram-se em O Amor Dá-me Tesão, enquanto que Não Fui Eu Que Estraguei contém o maior número de experiências musicais. O desequilíbrio não é suficiente para se afirmar que o primeiro é o disco pop e o segundo o disco experimental. O Amor inclui “Eleva!” uma batida eletrónica que sampla com uma exuberância matreira o pregar de um televangelista, e Não Fui Eu inclui “Tu Não Tens de Mudar”, discutivelmente o mais próximo que este disco chega de um single.
É necessário salientar que uma empreitada desta envergadura não poderia ser levada a cabo por apenas uma pessoa. Entre os contribuintes para o disco encontram-se alguns dos suspeitos do costume como todos os ex-Ornatos, Rui Lacerda (dos Pluto e Supernada) assim como outros menos óbvios como os rappers Bezegol e Carlos Nobre (hoje conhecido como Carlão) com quem o músico já tinha colaborado na “Casa (Vem Fazer de Conta)” dos Da Weasel.
Em forma e substância, Foge Foge Bandido é pura irreverência, um projeto que, mais de quinze anos depois, mantém a sua mística pela sua relativa impenetrabilidade e resistência a qualquer tipo de classificação. Para aguçar o apetite do ouvinte intimidado com o tamanho desta monstruosidade, fica aqui uma lista dos dez momentos mais inusitados deste disco:
- Os sucessivos takes falhados e a conversa de estúdio na “Canção da Canção da Canção da Lua”.
- O refrão corte e costura de “Onan, o Rapaz do Presente”.
- O spoken word em “Ainda Pode Descer”.
- A jornada que é “Fora de Combate”.
- As duas versões de “A Cisma” a primeira mais acústica e a segunda mais eletrónica.
- A colagem na secção instrumental em “Diz-me Se Aprovas”.
- O que quer que se esteja a passar em “Cabói Inglês”.
- A maneira como os instintos pop e experimentais de Manel Cruz se misturam em “Estou Pronto”
- A batida eletrónica completamente inesperada de “Esta Merda Começa a Ter Piada”.
- A versão ao vivo de “Canal Zero” em que a fita parece estar a andar ao dobro da velocidade.
Para aqueles que dispensam as experiências (e ficam a perder com isso), deixamos aqui também uma lista com as dez músicas mais convencionais do disco:
- Tu Não Tens de Mudar
- Ninguém É Quem Queria Ser
- Borboleta
- Diz-me Se Aprovas
- Canção da Canção da Lua
- Tirem o Macaco da Prisão
- A Dor de Ter de Errar
- Canção da Canção Triste
- Canção Segredo
- Quando Eu Morrer