2Pac contra Biggie Smalls. Nas contra Jay-Z. Ice Cube contra os NWA. E agora Drake contra Kendrick. Uma cronologia (simplificada) da maior battle do século.
Até 2018 Drake era um gajo que era considerado um battle rapper letal. Mas nesse ano saiu “The Story of Adidon”, uma diss track que rebentou completamente com o beef que havia entre Drake e Pusha T. O rapper dos Clipse revelava que Drake andava a esconder um filho e atacava o caracter do canadiano de uma forma tão cruel que este não tinha capacidade de responder. Mas sem contar com essa derrota, as pessoas continuavam a olhar para Drake como um tipo que ganharia quase todas as batalhas em que entrasse. E os fãs de hip hop salivavam por uma batalha em específico: Drake contra Kendrick Lamar. Este ano a batalha aconteceu.
Um pequeno contexto antes de começarmos a cronologia. Em 2011 Kendrick Lamar era considerado a grande promessa do rap da costa Oeste depois de editar Section.80. Já Drake preparava o seu segundo álbum, Take Care, que o catapultaria para a fama internacional. O canadiano olhou para o jovem Kendrick e decidiu dar-lhe espaço para cantar no seu disco e levá-lo em digressão.
Kendrick mostrou-se grato e pediu um verso a Drake para good kid, m.A.A.d city. Isto em 2012. No ano seguinte, Kendrick é convidado a dar um verso para “Control” de Big Sean e o rapper de Compton aproveitou a oportunidade para rasgar tudo e todos, mostrando-se como um tipo cheio de ganas.
“I’m usually homeboys with the same niggas I’m rhymin’ with
But this is hip-hop, and them niggas should know what time it is
And that goes for Jermaine Cole, Big K.R.I.T., Wale
Pusha T, Meek Millz, A$AP Rocky, Drake
Big Sean, Jay Electron’, Tyler, Mac Miller
I got love for you all, but I’m tryna murder you niggas”
Competição e provocação no hip hop não são novidade. E o verso não é particularmente pernicioso para nenhum dos visados (comparem, por exemplo, ao que Halloween fez em “Fuck Y’all Yo”), mas Drake levou a mal a menção. E aí começou um jogo de bocas veladas entre Drake e Kendrick. Este jogo durou até 2024 quando Kendrick decidiu que era tempo de arrumar o assunto.
Mas comecemos uns meses antes:
Outubro de 2023 – Uma equipa de sonho junta-se na canção “First Person Shooter”. Drake convida J. Cole para um verso, reunindo na mesma faixa dois dos três membros dos “Big Three” (os fãs de hip hop consideram que Cole, Drake e Kendrick são os três melhores rappers da década passada). No seu verso (bem bom, por sinal), Cole canta: “Love when they argue the hardest MC / Is it K-Dot? Is it Aubrey? Or me? / We the big three like we started a league, but right now, I feel like Muhammad Ali”. Ou seja, reconhece a competição entre os três, mas diz que naquele momento se sentia como Muhammad Ali (que é o maior em tudo e para sempre!). A resposta viria cinco meses depois.
22/3/2024 – Sai o disco WE DON’T TRUST YOU de Future e Metro Boomin. A sexta canção, “Like That”, inclui a participação de Kendrick Lamar. No seu verso (de antologia), Kendrick canta: “Motherfuck the big three, nigga, it’s just big me”. Tradução: lixem-se Drake e Cole, isto nem é uma discussão, eu sou o único que manda aqui. Estava lançado o beef.
5/4 – A primeira resposta a Kendrick veio de J. Cole com a canção “7 Minute Drill”, do disco Might Delete Later. “He still doin’ shows, but fell off like The Simpsons / Your first shit was classic, your last shit was tragic / Your second shit put niggas to sleep, but they gassed it / Your third shit was massive and that was your prime”. Cole ataca a discografia de Kendrick, dizendo que To Pimp a Butterfly era um disco chato (ehehehehehehehe!) e que o rapper de Compton já tinha passado há muito o seu pico artístico e criativo.
7/4 – Em palco, durante um concerto, J. Cole dirigiu-se ao público para pedir desculpa pela canção “7 Minute Drill”. “The lamest shit I did in my fucking life”, disse ele. A canção acabou por ser retirada das plataformas e Cole saiu do beef. One down!
13/4 – Três semanas depois de “Like That”, Drake reagiu às declarações de Kendrick com “Push Ups”, uma boa canção na qual o canadiano lembra que SZA, Travis Scott e 21 Savage venderam mais do que Lamar em 2022 (o campeão de vendas foi Drake, como é seu apanágio). Apesar de ser uma boa canção com um refrão que fica no ouvido, Drake teve poucos pontos de ataque. Disse que a editora de Kendrick lhe ficava com 50% dos ganhos e que o californiano era baixo (Lamar tem 1,65 metros): “How the fuck you big steppin’ with a size-seven men’s on?” (esta barra é hilariannte).
19/4 – Seis dias depois dos primeiros leaks de “Push Ups”, Drake edita “Taylor Made Freestyle”, uma nova diss contra Lamar. E ataca mais o âmago do rapper de Compton já que Drake usou inteligência artificial para imitar a voz de 2Pac e de Snoop Dogg (duas lendas da costa Oeste). “World is watching this chess game, but oh you out of moves”, cantou Drake, gozando com Kendrick por não ter ainda respondido.
26/4 – Os representantes legais de Tupac Shakur interpuseram uma ação contra Drake por ter “recriado” o rapper sem permissão. A canção acabou por ser retirada das plataformas.
30/4 – Começa o contra-ataque, 17 dias depois de “Push Ups”. Kendrick Lamar começa “Euphoria” (talvez a melhor canção a ter saído do beef) num ritmo lento atípico (normalmente as diss tracks são canções com bastante energia) até que o beat muda e o rapper de Section.80 lança uns ad libs viciantes “Shoo, shoo, shoo / Shoo, shoo, shoo / Bee, bee, bee, bee, bee, bee”. E aí o ritmo sobe e as bocas começam a cair como bombas. Kendrick ataca Drake por este não ser “negro o suficiente”, por estar de fora da cultura, por ter recorrido a cirurgias de perda de peso (?), por ser um “peso pluma” no jogo do rap e por ser um mau pai (afinal, como revelou Pusha T, Drake escondeu um filho). “It’s always been about love and hate, now let me say I’m the biggest hater / I hate the way that you walk, the way that you talk, I hate the way that you dress / I hate the way that you sneak diss, if I catch flight, it’s gon’ be direct”, canta Lamar. Não é uma questão musical. Há aqui (muito) ódio pessoal.
3/5 – Quatro dias depois, estavam ainda os fãs a encontrar novos significados para “Euphoria” e Kendrick lança a canção “6:16 in LA”. Uma nova diss, “back to back” (ou seja, sem dar tempo para Drake reagir, como o canadiano tinha feito no beef em que esmagou Meek Mill). A canção é um duro golpe em Drake por vários motivos. O primeiro do qual por roubar o formato-título de muitas canções de Drake (ter uma hora e uma cidade no título da canção, como “5 AM in Toronto” ou “4 PM in Calabasas”). Há inúmeros vídeos no YouTube a explicar todos os significados por trás deste título – há quem afirme que tem sete significados escondidos (obrigado, Luka) – e nas letras. E na canção Kendrick sugeria que tinha alguém do círculo íntimo de Drake a dar-lhe informações sobre o seu adversário. Esta insinuação faria Drake andar aos papéis mais tarde, negando a princípio e depois afirmando que afinal tinha sido ele a plantar esses ratos.
3/5 – Drake publica no Instagram um remix de “Buried Alive Interlude”, a canção que deu a Lamar no disco Take Care. No seu verso, Drake diz a Kendrick que devia agradecer-lhe por todas as oportunidades que lhe deu. “First time people lined up for your ass / Now you sayin’ two pussy boys gettin’ outta line”, atira Drake.
3/5 – Nesse mesmo dia Drake lançou “Family Matters”, provavelmente a sua melhor canção neste beef. No seu flow rápido, Drake começa por atacar Kendrick e a sua superioridade moral, invocando depois os casos de infidelidade que Lamar admitiu em Mr. Morale & The Big Steppers e a afirmar que o rapper foi até violento com a sua namorada de longa data e mãe dos seus dois filhos. E diz mesmo que um dos filhos de Kendrick é do seu amigo e colaborador de longa data Dave Free. No vídeo que acompanha a diss, Drake destroi uma carrinha como a que aparece na capa da edição deluxe de good kid, m.A.A.d city. “When you put your hands on your girl, is it self-defense ‘cause she bigger than you?”, canta Drake, voltando a gozar com a estatura de Kendrick, depois de o atacar por se autoproclamar o “libertador de escravos”, afirmando que é um hipócrita. Mas o que aconteceu a seguir ninguém estava à espera:
3/5 – No mesmo dia em que lançou “6:16 in LA” e Drake publicou “Family Matters”, Kendrick respondeu com “meet the grahams”. Nesta canção de tom sinistro, Lamar endereça a família directa de Drake (os Grahams). A Adonis, o filho, diz para não imitar o pai que não é um homem sério. Ao pai de Drake acusa-o de ser responsável por ter criado um psicopata degenerado. Diz ainda que Drake tem uma outra filha escondida (não há provas disto, mas a dúvida ficou). Mas o mais cruel é quando se dirige à mãe do canadiano: “Sandra, sit down, what I’m about to say is heavy, now listen / Mm-mm, your son’s a sick man with sick thoughts, I think niggas like him should die”, comparando depois Drake a Harvey Weinstein e sugerindo que ele e os seus sócios têm um esquema de exploração de menores.
4/5 – o coup de grâce. Chega à Internet “Not Like Us”, uma canção com um beat orelhudo até mais não produzido por DJ Mustard (“Mustard on the beat, ho”) e com algumas das linhas mais cantáveis da carreira de Kendrick Lamar. É um êxito imediato e uma canção pop que atinge o primeiro lugar das tabelas. Um banger total. A particularidade? É talvez a canção mais crua de todo o beef (tirando “meet the grahams”, claro). “Certified Lover Boy? Certified pedophiles / Wop, wop, wop, wop, wop, Dot, fuck ‘em up / Wop, wop, wop, wop, wop, I’ma do my stuff / Why you trollin’ like a bitch? Ain’t you tired? / Tryna strike a chord and it’s probably A minooooorrrrrr” canta Kendrick Lamar, enterrando para sempre o beef. Uma pesquisa pelas redes sociais mostra centenas de vídeos de festas onde putos bêbedos chamam “pedófilo” ao seu rapper favorito; discotecas a abarrotar onde a música do DJ é abafada pelas vozes dos que festejam. A machada final? A canção venceu Drake no seu próprio jogo.
(uma curta nota. Drake nunca foi considerado o melhor rapper tecnicamente, ou o melhor letrista, ou o melhor curador de discos. Mas é sem dúvida o maior criador de hits do rap actual – o caso muda um pouco de figura se Weekend for tido na conversa. Tem mais de 70 milhões de ouvintes mensais no Spotify e 16 canções com mais de mil milhões de replays na plataforma. E os números ainda são muito importantes no mundo do hip hop)
É que “Not Like Us” bateu recorde atrás de recordes de audição no Spotify, incluindo muitos recordes detidos por Drake.
5/5 – Drake tentou responder a “Not Like Us” com “The Heart Part 6”, um golpe que terá doído a Kendrick Lamar. Desde que começou a gravar que o rapper de Compton tem vindo a gravar várias canções com o título “The Heart”. A última tinha sido “The Heart Part 5”. E apesar desta boa jogada de Drake, a canção de foi considerada altamente desinspirada e uma tentativa pífia de se levantar. Pensemos na fotografia de Muhammad Ali gritando para um Sonny Liston deitado sobre as suas costas no meio de um ringue. “Get up and fight, sucker!” gritou Muhammad Ali, mas Liston não tinha vontade de se levantar. Drake já não tinha força para se erguer. Por fim retirou a publicação em que anunciava “The Heart Part 6”. Abanava a bandeira branca.
Junho e Julho – Depois de vencer por unanimidade (bem, há uns fãs que juram a pés juntos que Drake não perdeu), Kendrick fez uma volta de vitória. A 19 de Junho chamou amigos de Compton incluindo Tyler the Creator, Schoolboy Q, Jay Rock, Ab-Soul ou Dr. Dre para um concerto de celebração do orgulho de artistas de Los Angeles. Nesse concerto Lamar cantou “Like That”, “Euphoria”, “6:16 in LA” e terminou o concerto com “Not Like Us”. Que repetiu quatro vezes como encore, chamando sempre cada vez mais pessoas para palco. Duas semanas depois, a 4 de Julho, editou o vídeo de “Not Like Us”, com mais ataques a Drake.
E o resto? É história (e GNX).
PS – Kendrick Lamar ainda editou uma canção onde dava a entender que já não ia regressar ao beef: “Watch the Party Die”, uma das melhores canções do ano e que não está nas plataformas de streaming, só no Instagram do rapper.
PPS – Drake avançou com dois processos contra Kendrick Lamar. Um por difamação e outro por o rapper ter, alegadamente, usado bots para promover “Not Like Us”. Irónico porque em “Family Matters” cantava que “a cease and desist is for hoes”.
PPPS – Declaração de interesse: este texto foi escrito por alguém que considera o Kendrick Lamar um dos seus rappers favoritos e que decidiu meter esta frase mesmo no fim porque sabe que pouca gente chegará a este ponto do texto.