Kendrick Lamar não quer mais a coroa de salvador. No seu novo disco desvenda-nos os demónios que combateu nos últimos anos e permite-nos participar na sua catarse. É um disco que não é fácil, mas é essencial. O rei nunca abandonou o trono e deu-nos o disco do ano.
Comecemos pelo fim. “Sorry I didn’t save the world, my friend/ I was to busy buildin’ mine again”, desabafa Kendrick Lamar em “Mirror”, o posfácio de Mr. Morale & The Big Steppers. Ao final de uma hora de terapia gravada em formato de canções, o rapper de Compton assegura que desta vez vai pôr-se a ele mesmo no topo das suas prioridades, rasgando o rótulo de “voz de uma geração”, à semelhança do que fez Bob Dylan na década de 60.
Depois de abordar os problemas de crescer num dos bairros mais violentos dos Estados Unidos e de como isso condicionou várias gerações de jovens em good kid, maad city; expôr as cicatrizes abertas da América negra em To Pimp a Butterfly e cantar sobre as dificuldades de lidar com a fama em DAMN., Kendrick afirma de forma perentória: “I chose me, I’m sorry”. Mas “Mirror” é o culminar de cinco anos de radio silence e de profundas mudanças na vida de Kendrick Lamar Duckworth. E Mr. Morale & The Big Steppers é um retrato dos demónios desses anos conturbados, envolto em forma de um álbum duplo. Deitemo-nos no divã, senhor Duckworth, e oiçamos a sua catarse.
Parte 1.
While the world around me evolves, I reflect on what matters the most. The life in which my words will land next.
– comunicado da pgLang de Agosto de 2021
O disco começa com a voz de Whitney Alford, a namorada de longa data de Kendrick, a desafiá-lo para que conte a verdade. “A tua verdade.” É então que o rapper explica que nos últimos 1.855 dias passou por “algo”. É esse “algo” que é explorado nas letras do disco. Desde a depressão, à adição ao sexo, às traições à namorada, ao nascimento dos dois filhos e à ansiedade que tal acarreta, às dúvidas relativas a uma pandemia, passando pela relação com Deus, por aperceber-se que afinal não é tão maturo e gentil como se tinha em conta, descobrir que a mãe tinha sido violada e que o próprio tem vários traumas de infância que o condicionam são alguns dos temas que o artista irá abordar ao longo do disco.
A primeira canção do disco, a explosiva “United Grief”, é exatamente uma admissão de que procurou refúgio na luxúria e no luxo para enterrar os seus pensamentos mais negros. A canção conta com a participação de Sam Dew que canta em várias das faixas, servindo como linha guia do álbum. O instrumental é bastante despido, com um piano e um sintetizador a pontuarem uma drum machine em ritmo frenético, a tentar acompanhar a velocidade a que Kendrick debita rimas, mostrando o seu virtuosismo, sem nunca sacrificar a clareza. Talvez não fosse este o estilo directo e despojado que se esperava do músico que virou o mundo do hip hop do avesso pelo menos três vezes, mas a cada audição, o mesmo torna-se mais atraente e e mais indispensável.
Neste disco, mais do que em qualquer outro, temos Kendrick a mostrar a sua técnica enquanto rapper, dispensando flows tão variados que quase somos tentados a acreditar que é mais do que apenas um músico que cospe rimas neste disco, adivinhando que se trata sim de um colectivo. Um dos exemplos em que Kendrick surge mais endiabrado é no single “N95”, uma canção onde o cantor se questiona sobre o que fica depois de nos cair a máscara, depois de tudo o que é superficial ter sido retirado, mas onde lida também com a fama.
http://https://www.youtube.com/watch?v=zI383uEwA6Q
Voltando à narrativa, o músico de Section .80 vai deixando pistas sobre o que foram estes cinco anos de silêncio, como o nascimento da filha, ou os casos extraconjugais que deterioraram a sua relação com Whitney Alford, a mulher que aparece na magnífica capa deste Mr. Morale & The Big Steppers a amamentar o filho mais novo do casal, Enoch. E é Whitney a presença constante deste álbum. Ouvimo-la por diversas vezes a incentivar o namorado de longa data a aceitar ir para a terapia e a narrar a evolução de Kendrick no seu processo de aceitação.
É também Whitney que ouvimos na voz de Taylour Paige, a atriz que discute com o rapper na fascinante “We Cry Together”, uma versão atualizada de “Kim”, de Eminem, em que Lamar reproduz uma discussão incendiada entre um casal. Ambos gritam com o outro, mandando-se mutuamente à merda (Fuck you, bitch/ Fuck you, nigga/ Nah, fuck you, bitch/ Nah, fuck you, nigga”), sobre uma linha repicada de piano jazzy. A canção é uma das mais bem conseguidas do disco e entra directamente para o cânone do rap. Mas a deterioração da relação a que assistimos acaba por desaguar numa sessão de sexo, num momento que materializa de forma magnífica uma relação tóxica. É então que ouvimos Alford de novo, desta para chamar a atenção a Kendrick para que volte a focar-se nos seus defeitos: “Stop tap-dancing around the conversation”.
O objetivo da presença de Whitney é orientar o músico de 34 anos para que encontre a paz interior e consiga perceber o porquê de agir como age – traições constantes, com uma adição à luxúria e uma incapacidade de cortar com o passado tenebroso -, servindo como que o novelo no labirinto de Dédalo. É a mãe dos seus filhos que lhe sugere que procure ajuda e o convence, no final, a encontrar-se com um terapeuta. Esse encontro entre paciente e terapeuta – o autor de livros de auto-ajuda Eckhart Tolle -que o que marca o final da primeira parte do disco.
Nesta primeira parte de terapia há canções sobre o não saber lidar com a pressão imposta pelo pai, que o tentou sempre impedir o filho de seguir por estradas mais negras (a fabulosa “Father Time” com Sampha a cantar o refrão numa das faixas mais bem conseguidas deste disco); sobre se ainda será amado caso revele quem é, na faixa quase roubada a Marvin Gaye “Die Hard”; ou ainda na canção de agradecimento a Whitney por o ter ajudado e amado durante os momentos mais difícieis dos últimos anos em “Purple Hearts”, canção que conta com um verso pesadíssimo de Ghostface Killah, dos Wu-Tang Clan, sobre um beat muito R&B.
http://https://www.youtube.com/watch?v=toEW7_-pvOY
Parte 2.
There’s beauty in completion. And always faith in the unknown.
– comunicado da pgLang de Agosto de 2021
O segundo disco começa na décima sessão de terapia a que Kendrick aceitou ir. É nesta sessão que Whitney nos conta que houve um avanço significativo. Num beat bastante despido, mas eficaz, o rapper experimenta com vários flows e ad-libs para contar a história de como ultrapassou os arrependimentos e como essa luta o deixou exausto, mas pronto para um novo capítulo
Miss Regrets, I believe that you done me wrong
Miss Regrets, can you please exit out my home?
Miss Regret, I think I’m better off alone
Miss Regret, I got these deep regrets
Some things I can’t forget
Lord knows, I’ve tried my best
You said it’s not my best
I came up out my flesh
Some things I must confess
Spoke my truth, paid my debt
Can’t you see I’m a wreck?
Let me loose, I digress
This is me, and I’m blessed
This is me, and I’m blessed
This is me, and I’m blessed
This is me, and I’m blessed
Anybody fightin’ through the stress?
Anybody fightin’ through the…
http://https://www.youtube.com/watch?v=6nTcdw7bVdc
É com essa folha em branco que o músico começa a rejeitar o mote de salvador (do hip hop, de almas, do mundo). Na canção “Crown” canta sobre um riff de piano minimalista: “I can’t please everybody” e reconhece que “Heavy is the head that chose to wear the crown/ To whom is given much is required now”. A referência shakespeariana à coroa remete de novo para a capa do disco, na qual Kendrick surge com uma coroa de espinhos, comparando-se a Cristo que se sacrificou pelos pecados do mundo (já em “Rich Spirit” tinha afirmado que era “Christ with a shooter” e em “Worldwide Steppers” afirmava: “Asked God to speak through me, that’s what you hear now”). No entanto, sente que é altura de depôr essa mesma coroa de espinhos.
Este reconhecimento de que não é um salvador é reforçado na canção “Savior”, onde reafirma o desejo de deixar de ser visto como um ser “puro” e de como continua à procura da resposta sobre como ser melhor pessoa (“The cat is out the bag, I am not your savior/ I find it just as difficult to love thy neighbour”), virando-se para Deus para encontrar esse caminho de ser ele mesmo.
Entre as colaborações neste segundo disco contam-se as de Baby Keem (“Savior (Interlude)”) e Tanna Leone (“Mr. Morale”), dois artistas da pgLang que estão sob a alçada de Kendrick, mas também a de Kodack Black (“Silent Hill”). Estas últimas são as canções menos bem conseguidas do disco. “Mr. Morale” assenta sobre um beat fraco, mas tem um excelente segundo verso, enquanto “Sillent Hill” é uma faixa trap que pouco adiciona e na qual Kodack Black brilha mais do que Lamar, mas não o suficiente para nos entusiasmar).
Mas as duas outras canções deste segundo disco, “Auntie Diaries” e “Mother I Sober”, são de outra liga. São magníficos temas, com beats bem trabalhados e Kendrick em modo narrador introspectivo e contido, longe do K-Dot de 2012, ou do Kung-Fu Kenny de 2017. A primeira canção fala sobre a forma como o músico aprendeu a aceitar os seus familiares da comunidade trans e como se sentou a si próprio no banco do réu pela forma como tratava membros da comunidade LGBT.
o final da faixa, Kendrick lembra o dia em que confrontou um padre que disse que a sua prima trans (Mary-Ann) era a origem do mal do mundo, questionando-lhe se a mensagem da Igreja não devia ser uma de amor ao próximo? Com uma vitalidade crescente, o músico atira rimas com cada vez mais autoridade, admitindo no final que aquele foi o dia em que escolheu a humanidade em vez da religião.
I said, “Mr. Preacherman, should we love thy neighbor?
The laws of the land or the heart, what’s greater?
I recognize the study she was taught since birth
But that don’t justify the feelings that my cousin preserved”
The building was thinking out loud, bad angel
That’s when you looked at me and smiled, said, “Thank you”
The day I chose humanity over religion
The family got closer, it was all forgiven
http://https://www.youtube.com/watch?v=-vrhf1P9zwc
Abordando um tema pouco comum no hip-hop, um género ainda altamente misógino e homofóbico, Kendrick dá um passo em frente, tal como Jay-Z tinha feito em “Smile”, a canção onde revelou a dificuldade que teve em admitir que a mãe era lésbica. Há ainda um longo caminho a percorrer no género e na comunidade para normalizar a homossexualidade, mas os passos começam a ser dados.
A fechar o disco, uma pérola, talvez a jóia da coroa de espinhos que Kendrick usa. “Mother I Sober” é uma canção composta por um beat simplista, só o piano, o baixo de Thundercat (louvado seja o seu nome) e um refrão cantado por Beth Gibbons dos Portishead. Assumindo, para maior parte do tema, um tom sussurrado, o rapper recorda o dia em que viu a mãe com feridas na cara depois de ter sido sexualmente abusada e como esse trauma se estendeu ao longo da sua vida.
Mother’s brother said he got revenge for my mother’s face
Black and blue, the image of my queen that I can’t erase
‘Til this day can’t look her in the eyes, pain is takin’ over
Blame myself, you never felt guilt ’til you felt it sober
O rapper explica ainda que a mãe se tornou zelosa quanto ao bem-estar do filho, questionando-o constantemente se tinha sido molestado por um dos tios, ao que Man-Man (o petit nom que recebeu em criança) sempre respondeu que “não”, mas a sua progenitora sempre duvidou desta resposta, deixando-o traumatizado.
I asked my momma why she didn’t believe me when I told her “No”
I never knew she was violated in Chicago, I’m sympathetic
Told me that she feared it happened to me, for my protection
Though it never happened, she wouldn’t agree
Now I’m affected, twenty years later trauma has resurfaced
Amplified as I write this song, I shiver ’cause I’m nervous
I was five, questioning myself, ‘lone for many years
Nothing’s wrong, just results on how them questions made me feel
Toda a canção é cosida pelo verso cantado por Beth Gibbons, que surge quase como um anjo a pairar no éter e a vocalizar a dor interna sentida por Lamar.
A canção continua com a intensidade em crescendo, uma sublime orquestração de cordas e vozes acrescenta profundidade ao instrumental, enquanto Kendrick Lamar se exalta, sem nunca se tornar agressivo, explicando que ficou traumatizado e que só se apercebeu dessas cicatrizes profundas ao escrever este disco, a conversar com os que ama (Whitney ao leme) e com terapia.
E depois lança-se a fazer o que melhor sabe: diagnosticar os problemas da comunidade negra nos Estados Unidos (da qual assumimos nada saber, na verdade):
The devastation, hauntin’ generations and humanity
They raped our mothers, then they raped our sisters
Then they made us watch, then made us rape each other
Psychotic torture between our lives we ain’t recovered
Still livin’ as victims in the public eyes who pledge allegiance
Every other brother has been compromised
I know the secrets, every other rapper sexually abused
I see ’em daily buryin’ they pain in chains and tattoos
So listen close before you start to pass judgement on how we mov
Learn how we cope, whenever his uncle had to walk him from school
His anger grows deep in misogyny
This is post-traumatic Black families and a sodomy, today is still active
So I set free myself from all the guilt that I thought I made
So I set free my mother all the hurt that she titled shame
So I set free my cousin, chaotic for my mother’s pain
I hope Hykeem made you proud ’cause you ain’t die in vain
So I set free the power of Whitney, may she heal us all
So I set free our children, may good karma keep them with God
So I set free the hearts filled with hatred, keep our bodies sacred
As I set free all you abusers, this is transformation
A canção deixa ainda uma questão no ar. Whitney foi-se embora (“But Whitney’s gone, by time you hear this song, she did all she could”) ou aceitou ficar com o rapper, daí a sua presença constante neste disco? Porque é a mesma Whitney (acompanhada da filha de Kendrick) que se ouve no final de “Mother I Sober”: “You did it, I’m proud of you/ You broke a generational curse”. A terapia deu frutos.
http://https://www.youtube.com/watch?v=Vo89NfFYKKI
Parte 3.
Sometimes the mirror is a harsh critic. Shit can get real ugly. Im proud of the work we’ve done individually and as a family. Honored to be a part of this album, Kendrick. Thank you for your transparency. Healing can begin….
– Whitney Alford no Instagram
O final do disco é um epílogo. “Mirror” é um portento de canção na qual Kendrick depõe a coroa de espinhos e anuncia ao mundo que está na hora de tratar de si e dos seus.
Mad at me ’cause she didn’t get my vote, she say I’m triflin’
Disregardin’ the way that I cope with my own vices
Maybe it’s time to break it off
Run away from the culture to follow my heart
(…)
Sorry I didn’t save the world, my friend
I was too busy buildin’ mine again
I choose me, I’m sorry
I choose me, I’m sorry
I choose me, I’m sorry
I choose me, I’m sorry…
http://https://www.youtube.com/watch?v=6P5qtD__2nI
É com esta canção que Kendrick Lamar encerra a parceria com a Top Dawg Entertainment, a sua editora de toda uma vida, que ajudou a erguer e que sempre o apoiou; e também o disco Mr. Morale & The Big Steppers. Ele escolheu-se a ele mesmo. E ao fazê-lo, senhoras e senhores, deu-nos o disco do ano.
E agora?
“The minute I hear good news, it just motivates me to do more. I don’t want to get complacent. If you asked seven out of ten people, ‘What would you do if you got the Pulitzer Prize?,’ they’d say, ‘I’d put my feet up.’ But that would make me feel I’d reached my pinnacle at 30 years old, and that wouldn’t make me feel good.”
– Kendrick Lamar em entrevista à Vanity Fair, 2018
Há mais de uma década que Kendrick Lamar está no topo do rap. Se pensarmos nos últimos dez anos de hip-hop, os seus discos são sempre marcos da cultura e não há nenhum rapper que se aproxime da qualidade atingida pelo vencedor do Pulitzer.
E se com good kid, maad city K-Dot solidificou-se como promessa na cultura; com To Pimp a Butterfly conquistou o mundo e com DAMN. confirmou a Dr. Dre que é capaz de segurar o trono, este Mr. Morale & The Big Steppers é o corolário de uma carreira de excepção, tal como Blonde on Blonde foi para Dylan. Ninguém duvida que Kendrick Lamar é o dono do mundo e que é capaz de tecer álbuns imaculados. Mas depois de conquistar o mundo, o que sobra?