Finalmente! O tão esperado longa duração da banda Dônica anda já nos ares do mundo, e essa é uma excelente notícia. Por várias razões, como é óbvio. Desde logo porque o EP que o grupo lançou, e que mereceu nota crítica neste site, foi deixando água na boca a quem o ouviu, mas sobretudo por razões de ordem histórica, digamos assim. É que, no meio do turbilhão efervescente dos novos nomes da música brasileira que vão surgindo dia após dia, a banda Dônica é, talvez, o único coletivo que “avança rumo ao passado”. E isso agrada-me imensamente! A justificação da expressão histórica que utilizei em linhas anteriores carece de uma explicação, para que se possa entender o que vos quero dizer. Muitos dos novos nomes da mais recente música brasileira são “órfãos do passado”, uma vez que estão bem mais sintonizados com movimentos musicais atuais e influências exteriores ao seu próprio contexto geográfico, o que não é bem o que acontece no caso dos Dônica. O rock progressivo (que também se fez, e bem, no Brasil dos anos 70) está na base da identidade do grupo, mas acima de tudo essa identidade está inequivocamente fundada num dos maiores discos alguma vez feitos em solo brasileiro, e que, por uma enorme proximidade afetiva, norteia a vida musical destes meninos. Trata-se de Clube da Esquina, o épico disco / movimento de Milton Nascimento e dos irmãos Borges (Márcio e Lô, sobretudo). É esse o duplo padrão sonoro de Continuidade dos Parques: rock progressivo e o disco de 1972, o álbum que queria mudar o mundo, e que, de certa forma, mudou. Essa mudança persiste e continua, agora pelas mãos de José Ibarra (teclado e voz), Lucas Nunes (guitarras), André Almeida (bateria), Miguima (baixo) e Tom Veloso, filho mais novo de Caetano, que compõe a maior parte das letras e da música, juntamente com José Ibarra.
O disco abre com “É Oficial”, canção medianamente psicadélica, iniciada através de sons que soam a África, na qual se canta apenas a expressão que dá nome à própria canção. Ótimo início, oficializando uma dupla abertura: a de Continuidade dos Parques, mas também a da vida adulta (é o primeiro Lp, e já não um ep) do grupo. É interessante perceber que o repertório do disco (são 11 canções ao todo) pode facilmente ser dividido, sem querer com isso ser absolutamente rigoroso, nas vertentes mencionadas no primeiro parágrafo deste texto. Assim, mais próximas da veia progressiva, estão as canções “Retorno Para Cotegipe”, “Inverno” e “Praga”, sobretudo esta última. Quem, ao ouvir “Praga”, não se recordar de algum do prog rock europeu dos anos 70, é porque terá andado muito distraído. Por outro lado, a vertente clubista é bem audível em “Casa 180”, uma das mais bonitas canções do álbum (embora, em alguns momentos, muito perigosamente encostada a “Waterloo Sunset”, dos The Kinks), mas também em “904” e “Bicho Burro”. No entanto, estes moços não são só passado, uma vez que adicionam aos sons desses antigos tempos, linguagens sonoras dos anos recentes, como acontece em “Macaco no Caiaque”, por exemplo, onde por entre rugidos de macacos se escuta um soul dançante de finíssimo recorte.
No entanto, o grande momento do disco terá de ser, inevitavelmente, a faixa “Pintor”, que conta com a especial participação do padrinho da banda, o grande Milton Nascimento. A canção é superlativa, e traz com ela um especial encantamento, um aconchegante espírito libertador. Os vocais são magistrais, e o contraste entre as vozes que nela se ouvem, promove uma ainda maior riqueza aos pouco mais de 3 minutos de duração que tem “Pintor”. Estará encontrado, sobre isso não tenho quaisquer dúvidas, o primeiro grande clássico da banda Dônica. Como balanço final, resta-me uma sólida ideia: tudo o que aqui se ouve é de elevadíssima qualidade. Já ouvi o disco várias vezes, e Continuidade dos Parques não cessa de crescer. Vai andar comigo todo o verão, garantidamente.
Uma última nota, talvez mais curiosa do que substantiva. O estranho título deste disco foi retirado de um conto de Julio Cortázar, grande mestre da metaficção e do rompimento com a linearidade temporal da mais clássica literatura. Refiro isto porque comecei por vos dizer, se bem se recordam, que neste trabalho a banda Dônica “avança rumo ao passado”. Não é preciso explicar mais, pois não?