Os Cornershop existem há pouco mais de 20 anos, e durante essas duas décadas e picos de existência não pararam de nos surpreender. Por incrível que possa parecer, a banda inglesa mudou radicalmente de estilo ao longo do seu tempo de vida. Começando por ser claramente marcada pelo som punk, foi-se tornando aos poucos, mas de forma bem segura, numa banda de cariz mais indie pop/rock. Foi, portanto, perdendo alguma da agressividade sonora que tinha de raiz, mas ganhou um lado mais festivo, mais prazeroso e iluminado que, de facto, não constava do seu adn original. Ou seja, transformou-se. E no entanto, nessa alteração, a banda soube evoluir sem facilitismos, tendo conseguido chegar a mais público sem perder a qualidade a que nos habituou desde sempre. Curiosamente, mantendo a tendência de revisitação de trabalhos antigos que parece estar na moda em muitos artistas e bandas da atualidade, também os Cornershop entraram nesse jogo. Pegaram no inaugural Hold On It Hurts, disco de 1994, e duas décadas e um ano depois (escapando ao número redondo das duas dezenas) publicaram Hold On It’s Easy. As poucas diferenças existentes nos títulos dos discos em questão não fazem pensar nas dissemelhanças que ambos verdadeiramente encerram. E, por isso mesmo, ouvir um a seguir ao outro não deixa de ser um exercício comparativo muito interessante. Sem querer ser muito exaustivo nessa confrontação auditiva, vale a pena dizer uma ou duas coisas a propósito desses dois álbuns gémeos. Ou melhor, falsamente gémeos. Vamos lá a isso, então.
As canções são as mesmas 10, e os títulos de todas elas permanecem iguais, sendo que a alguns deles, refiro-me aos do recente Hold On It’s Easy, foi-lhes acrescentado a expressão version no final. Apenas isso. O som amador, quase de garagem, de Hold On It Hurts foi um fantástico trunfo que os Cornershop souberam usar com grande proveito. Os temas do disco, algo sujos e com alguma agressividade rítmica, mostravam, nas suas letras, preocupações sociais bem específicas. No entanto, percebia-se que os Cornershop se divertiam a fazer música. Essa crueza, essa transparência artística, esse pouco ou nenhum fingimento fez do disco uma obra de grande interesse, e dos Cornershop uma banda a seguir atentamente. O seu principal mentor, o músico de nome Tjinder Singh, começou a fazer com que Leicester, a cidade que os viu nascer, ficasse no mapa musical da década de 90 do século passado. O disco trazia canções muito interessantes, mesmo que nem sempre bem tocadas (a juventude, sempre a juventude…), mas nelas, mesmo assim, habitava algum génio digno de registo. Refiro-me a temas como “Readers’ Wives”, “Change” (uma pérola de guitarras em fúria) ou “Born Disco: Died Heavy Metal” (outra pérola de guitarras furiosas), todos eles memoráveis. Outra das características interessantes da linguagem sonora dos Cornershop prendia-se (e prende-se ainda) com o facto de transportarem para as suas canções o universo indiano (linguagem, instrumentos, imaginário), uma vez que Tjinder, embora nascido e crescido em Inglaterra, é de origem punjabiana. A canção “Counteraction” é o exemplo maior do que digo, cantada em linguagem punjabi e feita com instrumentos indianos bem tradicionais. Hold On It Hurts beneficiava da grande mistura rítmica e cultural que promovia. O som punk, o rock estridente, a música indiana, o spoken word (na canção “Tera Mera Pyar”) e o jazz (em “Jason Donovan / Tessa Sanderson” e “Where D’U Get Your Information”) estavam de mãos dadas, e por estranho que possa parecer, a crítica sorriu ao disco e aos Cornershop, embora com algumas reservas.
Vinte e um anos depois, a banda volta ao disco de origem, transformando-o num álbum instrumental muito particular. Dão-lhe um outro título, como se constata pelo que já foi redigido, e uma inusitada roupagem, agora unindo a linguagem musical, que tão dispersa se apresentava no disco de 1994. A escolha do easy listening como estilo sonoro parece-me muito certeira. Assim, tirando a primeira canção, que está “praticamente intacta”, o álbum saído este ano parece ter surgido dos anos 60. Soa, a espaços, a Henry Mancini, soa a uma big band em plena forma, ou seja, soa maravilhosamente bem. Os Corneshop, uma vez mais, foram capazes da arte da reinvenção, mergulhando num registo sonoro surpreendente. As referidas canções do álbum Hold On It Hurts estão frescas como nunca, solarengas, bailantes, festivas. Criar, com canções feitas há mais de 20 anos, um disco completamente diferente do original, é um enorme sinal de criatividade artística. Claro que este Hold On It’s Easy não é uma obra prima. Aliás, Hold On It Hurts também não o era, embora os Corneshop já contem com algumas na sua discografia, como são os casos de Woman’s Gotta Have It (1995), When I Was Born For The 7th Time (1997) e Judy Sucks a Lemon For Breakfast (2009). Mas Hold On It’s Easy cheira a verão, e isso é o que apetece quando a meteorologia parece andar algo indecisa e incapaz de mandar chegar o calor de forma autoritária, e com ele a imperial fresquinha do nosso contentamento.