Ainda hoje me parece haver muitos equívocos e preconceitos em relação ao trabalho de Djavan. Para muitos (ia escrever alguns, mas mudei a tempo para que melhor se perceba, pelo eventual exagero da expressão, um pouco daquilo que julgo acontecer, de facto, em relação ao artista em questão), Djavan continua a ser posto à margem dos patamares em que se encontram outros grandes nomes da música popular brasileira. Para outros, como é o meu caso, o músico de Maceió sempre esteve próximo desse Olimpo, sendo que, por vezes, por lá permaneceu durante certo tempo, tal a qualidade e o valor de alguns dos álbuns que foi compondo. Nesse lote estarão, inequivocamente, discos como Djavan (1978), Alumbramento (1980), Luz (1982) ou Lilás (1984), por exemplo. A referência a estes quatro álbuns merece interesse particular para se perceber o fenómeno de crescimento do artista. É que, nos dois primeiros, a marca de um certo regionalismo composicional (nas letras e nas melodias) é bem notória, e acaba por ser o trunfo maior de um artista que começa a perceber-se pronto para o mundo, o que vem a revelar-se nos terceiro e quarto trabalhos referidos, onde a orientação mais jazzística e pop dos seus temas transportam Djavan para uma certa americanização da sua música, que nos discos em questão resulta maravilhosamente bem. No entanto, o álbum de estimação que aqui vos trago hoje não é nenhum dos atrás mencionados, mas aquele que se atravessa a meio desse caminho evolutivo, encarnando a essência dos primeiros e abrindo portas para os trabalhos posteriores, e para o futuro de Djavan enquanto intérprete e compositor consagrado no Brasil e no mundo. Trata-se do belíssimo e mal amado Seduzir.
A importância deste disco como obra de transição na discografia de Djavan parece-me inequívoca. Para além disso, o meu contacto com a sua música deu-se precisamente com Seduzir, no distante ano de 1984, altura em que comprei o LP em questão. O meu gosto pelo disco resultou da descoberta dessa nova voz, da beleza das suas canções, da delicadeza dos versos cantados, da mistura estética que promove, a meio caminho entre a tradição e a modernidade. Ouço Seduzir até hoje, sem que isso me dê o mínimo enfado. Aliás, como geralmente acontece com os grandes clássicos, tenho com o disco em causa uma relação de eterno espanto. Seduzir nunca deixou de me surpreender, talvez pela frescura das suas composições, ou pela generosa dose poética de alguns dos seus versos que resultam em autênticos poemas, dignos de um estatuto maior, que tão poucas vezes se atribui às letras de canções.
O disco abre com o samba «Pedro Brasil», referência óbvia ao descobridor português, bem como ao Santo de grande veneração católica. Depois vem «Seduzir», primeiro momento de grande impacto, canção com alguns tiques pop, mas ainda assim contida, algo tímida, embora com um refrão que obriga ao canto por parte de quem a ouve. É o primeiro clássico do disco. Em seguida entra «Morena de Endoidecer», canção sofrida, interiorana, de grande beleza. «Jogral», a quarta canção do disco, socorre-se de uma narrativa muito comum aos artistas que tiveram de sair das suas terras, fazendo-se às estradas e aos caminhos rumo a um futuro incerto. O lado A fecha com «A Ilha», composição de contornos jazzísticos, muito tipicamente djavaniana, que ganhou projeção inesperada ao ter sido interpretada pelo rei Roberto Carlos. O segundo grande momento surge a abrir o outro lado da rodela, na magnífica «Faltando Um Pedaço», tornada hit na voz da diva Gal Costa. A letra (ou melhor, o poema) aborda o momento do surgimento do amor, bem como a sua definição, e trata poeticamente a questão de uma forma belíssima: «Comparo sua chegada / Com a fuga de uma ilha / Tanto engorda quanto mata / Feito desgosto de filha». Depois de tanta beleza, «Êxtase» e «Luanda» quase passam despercebidas, até chegar «Total Abandono», penúltima faixa de Seduzir. A fechar, «Nvula Ieza Kia» e «Humbiumbi», duas canções que se fundem numa só, e que mostram uma vertente nova em Djavan, a negritude. O disco encerra da melhor maneira, com estes dois contagiantes temas. Djavan chamou Gilberto Gil para partilhar consigo os vocais, e nesse facto reside um enorme ganho, uma vez que as duas vozes combinam maravilhosamente bem.
Seduzir, dizia-o no final do primeiro parágrafo deste texto, é um disco mal amado por muita gente, que nele não consegue vislumbrar mais do que o óbvio, ou seja, as excelentes «Seduzir» e «Faltando Um Pedaço». Seduzir é bem mais do que isso, como tentei mostrar. É uma aposta, um risco, a assunção de uma linguagem nova e mais arrojada rumo a uma direção porventura ainda incerta, mas que a partir desse momento começou a ser trilhada. Mostra um Djavan como nunca mais se viu nos seus trabalhos futuros. Para o bem ou para o mal, Seduzir é um disco de um artista em vias de extinção, um trabalho em fase de preparação para qualquer outra coisa que só o futuro conseguiu definir melhor. E é também, no que me diz particularmente respeito, um álbum que me marcou bastante, e que chegou até mim numa época em que apenas me dava com os deuses Caetano, Milton, Gil e poucos mais. Com jeitinho, e sem qualquer esforço significativo da minha parte, acomodei Djavan a esse olímpico lugar. Em boa hora o fiz, felizmente.