Nestas primeiras semanas de 2015 já saíram alguns discos interessantes, como a tensão rock que reforma o pós-punk dos Viet Cong, o novo disco dos australianos Pond, a nova investida dos seus compatriotas Twerps (um bom esforço onde a escrita de canções não conseguiu acompanhar totalmente a excelência das melodias leves “à Real Estate”) e, é claro, o extraordinário I Love You, Honeybear de Father John Misty. Mas houve um, em particular, que me encheu as medidas: On Your Own Love Again, o segundo disco da americana Jessica Pratt.
Apesar de ter nascido em São Francisco, Pratt acaba por fugir ao estereótipo de artista da região, criado devido à ascensão de nomes como os conterrâneos Ty Segall ou os Thee Oh Sees. Conta-se que o seu primeiro disco, que saiu na editora Birth Records, só viu a luz do dia porque Tim Presley decidiu fundar uma editora com esse fim. On Your Own Love Again chega quatro anos depois, com o selo Drag City Records, e é um grande sucessor.
O seu registo tem sido alvo de inúmeras comparações, algumas delas rejeitadas pela artista (como a comparação com Joan Baez, que rejeita pela pureza folk em que não se revê). E essa rejeição percebe-se ao ouvir o disco: é intimista (foi gravado na sua própria casa), de uma subtileza irrepreensível, mas num formato sonhador e misterioso, com jogos de sons e sequências de acordes menos esperadas. Mesmo percebendo as comparações, creio que soa menos a cantoras clássicas da folk que a um encontro entre a fantasmagoria de contemporâneos como Amen Dunes ou Marissa Nadler e a bonita tristeza “clássica” de Nick Drake (e não cito os primeiros dois nomes por acaso; falo de gente que renova a folk e o confessionalismo e leva tudo isto para terrenos pantanosos, enevoados de algo que é tão subtil quanto denso e pesado).
Ao ouvir o disco, não há como não imaginar Jessica Pratt em casa, com a sua guitarra acústica, absorta na música e em si própria, profundamente fechada ao que se passa “lá fora” – ainda que seja uma imagem algo ilusória, porque não só de guitarra acústica e voz se faz o disco, e há um perfeccionismo na condução das canções e na construção do disco que é seguramente menos espontâneo do que aparenta; e com isso sentimo-nos também nós absortos na beleza das suas composições, nos sonhos que nos canta e na partilha das imagens que lhe vão passando pela mente.
Num dos momentos que mais vezes tem sido referenciado nas resenhas, e com justiça pela beleza da frase e pela delicadeza com que Pratt a canta, ouve-se no início de “Game That I Play” versos demolidores: “People’s faces blend together / like a watercolor you can’t remember / in time”, numa canção enorme, que, a dada altura, sofre uma alteração de ritmo e registo que nos faz compreender melhor porque é que Pratt não é fã da pureza folk: ela não lhe permitiria a liberdade de, aqui e ali, fugir propositadamente da monotonia rítmica. Conseguir fazê-lo sem nos perder ou desligar o nosso estado de absorção mental no disco é absolutamente notável.
É, de resto, muito difícil falar das canções isoladamente, tal a beleza e a coerência que as atravessa, num disco recheado de composições melódico-poéticas irrepreensíveis. Mas há versos e momentos que me ficaram na cabeça: o prolongar de interjeições e sons misteriosos ao longo do disco (uns uh’s e uns oh’s, por exemplo, entre muitos outros difíceis de transcrever) que trazem todas as sombras ao cimo; Jessica Pratt a cantar de forma arrastada “And they play / in mind”, falando sobre os “sonhos que tinha”, em “Wrong Hand”; uma frase em “Greycedes” que começa com “Everybody tells me / he’s the kind of guy / you wanna”, e de cujo final não consigo decifrar de ouvido (nem quero, fica para a imaginação); a beleza plácida – talvez vívida – de “Moon Dude”; os versos “If you just can’t find the words to tell / let me say that I know you well” de “Jacquelyn in the Background”; e o belíssimo início da fabulosa “Back, Baby”, onde J.P. nos canta “Sometimes I pray / for the rain / you know I tried / to see things from your side / to leave things undefined”: outros espantosos versos.
E, por baixo de tudo isto, dedilhados de guitarra(s) extraordinários, que respeitam e honram a poesia das suas palavras. É difícil não ficar rendido a este On Your Own Love Again. E apetece recuperar os versos de Pratt – “And they play / In my mind“ – para dizer que, se os seus antigos sonhos andam a brincar pela sua mente, eles ficam a tocar longamente na nossa. Sobra, depois, o infinito silêncio lá de fora.