Estávamos no primeiro ano da década de 80, e eu quase morria simultaneamente de medo e prazer, quando soube que Debbie Harry iria lançar o seu primeiro disco a solo. A ideia era prazerosa em si mesma, mas a hipótese de que os meus adorados Blondie poderiam terminar, enchia-me de pavor. Depois de ter lido a notícia de que KooKoo estava para sair, andei aflito, desejando ardentemente ter o disco entre mãos. Lembro-me ainda do momento em que vi a imagem da capa pela primeira vez, e de ter ficado completamente siderado e obcecado por ela, ao ponto de ainda hoje achar que o trabalho do genial H.R. Giger sobre uma fotografia de Debbie Harry tirada por Brian Aris é um monumento icónico, extraordinário e poderoso. Se o disco não fosse bom, valeria a pena tê-lo só pelo artwork. Mais tarde, já na posse do álbum, veio o prazer repetido e repetido e repetido das múltiplas audições de KooKoo. Muito diferente do que sempre se ouviu dos Blondie (enfim, tirando um ou outro tique sonoro), KooKoo marcava uma mudança de direção, uma vontade de trilhar novos caminhos por parte da minha loirinha de estimação, e do seu parceiro Chris Stein. Sempre ligados à música negra de Nova Iorque, a dupla Harry & Stein chamou outra dupla para a produção do disco: Nile Rodgers (esse mesmo, que agora deixa meio mundo louco com a canção mais ouvida neste verão, dos Daft Punk) e Bernard Edwards dos míticos Chic, que tantos milhões de pernas fizeram dançar nos anos 70 e 80, sobretudo.
KooKoo abre com “Jump Jump” e cedo deixa de haver dúvidas sobre o que o álbum tem para nos oferecer. Ritmo, muito ritmo dançante, letras engraçadas e alegria a rodos. Que disco luminoso e eletrizante! “The Jam Was Moving” é o primeiro grande momento do LP, e uma onda mista de rock, pop e disco sound invade-nos a alma. Que grande canção, de facto! Soube envelhecer como poucas, e mantém-se firme ainda hoje no seu groovin’ statement. “Chrome” nunca foi uma das minhas preferidas, mas depois chega “Surrender”, e o génio Chic é absoluto. Os últimos (largos) instantes da canção deixam-me completamente parvo de espanto, e aquelas guitarras, aquele baixo e aquela bateria levam-me sempre ao empire state building do delírio! Segue-se “Inner City Spillover” em ritmos próximos do reggae, e os versos “Lying in her bed a brick fell on her head” e “The brick that smashed her brain is now a road in Maine” ainda hoje me fazem sorrir. Fechava-se, na altura das rodelas de vinil, o lado A.
O lado B abre com “Backfired”, dançante e hipnótico single do disco, “Chic a valer” (perdoa-me Eça, pela piada pirosa, mas apeteceu-me…). É dançar até doer! Depois, para o coração abrandar um pouco, vem o slow (era assim que se dizia nos oitentas, meus amigos) “Now I KNow You Know”, belíssimo, quase de ir às lágrimas, até ao espantoso twist final, que nos leva de novo pelos caminhos mais ritmados que o disco nunca esquece. “Under Arrest” é uma bomba, e outro dos melhores momentos de KooKoo. Volta a energia esfuziante, e “Military Rap” chega para mostrar que Debbie sempre piscou o olho à música de rua, que naquele tempo começava a esticar os seus tentáculos até chegar aos tops do mundo inteiro. Não é Rap o que se aqui se ouve, graças a Deus, mas percebe-se que ele anda por lá, disfarçado e distorcido pelo poder do baixo, das guitarras e do saxofone. O disco fecha com “Oasis”, canção de cambiantes orientais, a mostrar a excelência de Debbie Harry como letrista, pelo que não resisto a deixar-vos estes versos:
“How do you drive someone crazy?
To where?
In what kind of car?
Maybe we find a road map.
I’m sure it’s not very far.”
KooKoo é, por tudo isto, um disco que me acompanha há pouco mais de 30 anos, e permanecerá comigo enquanto a minha lucidez sonora o permitir. Adoro-o, e ouvir as suas 10 canções nos dias que correm continua a ser um extraordinário exercício de memória e de prazer. O medo que referi no início destas linhas desapareceu logo no ano seguinte, quando os Blondie produziram aquele que foi o último álbum da primeira vida da banda, o tão mal amado The Hunter. Sem que soubessemos, embora não fosse muito difícil adivinhar, KooKoo foi o último degrau de uma escada de sucesso, e o primeiro passo para o precipício final da banda de Debbie Harry.
Muito boa a resenha,vou procurar o álbum.