Steroids é um manifesto despudorado à raiva, feito por gente que é, sem sombra de dúvida, completamente fodida dos cornos. Nada nem ninguém se equipara ao que os Death Grips aqui fazem. Não aguentaríamos se tal não fosse o caso – haja misericórdia.
“Fuck you want from us?/We’re the same.”, sublinha MC Ride, abafado por um pulsante teclado empenado e, no que é uma novidade mais que bem-vinda, uma batida trap monstruosa. No verso seguinte, espreme eloquentemente toda a essência dos Death Grips: “But we know we’re fucked.”
Ser roda dentada na morosa e sossobrante engrenagem capitalista, i.e., “estar fodido”, não é um obstáculo ao trio; se alguma coisa for, será apenas dado adquirido, natureza e rumo circunstancial de terroristas sónicos que não poderiam querer saber menos da estabilidade das suas relações públicas ou da ideologia económico-política que os rodeia – músicos de nicho que constantemente repelem esse nicho com ausências de concertos, provocações constantes aos fãs e falsas declarações de rompimento da banda.
Se a revolução dos Death Grips não foi televisionada por alturas de The Money Store, definitivamente não o será agora. O grande público nunca morreu de amores pelo grotesco ou imprevistos, e se os demais ouvidos se mostravam increpantes no tomo mais populista da obra, não haverá em Steroids um prognóstico assinalando uma remessa massiva de debutantes convertidos ao rebanho. Nada disto assola ou desvia os Death Grips de seguirem – ao contrário de nós, a auto-inibida carneirada – a sua musa inconstante, os seus devaneios permeáveis à sensibilidade e ao entendimento comum: “Your innocence saves your hopes, I just throw the dice.”
Contudo, as intenções dos Death Grips continuam tão crípticas quanto a sua música exigente. Como interpretar “At the mercy of my discrepancy/I’ve got countless current identities/Which one should I pretend to be?” Vacuísmo, distúrbio, teatro ou simulação? Flatlander responde com 808s e histrionismo, os baixos, medindo esforços com o ribombar destrutivo do baterista Zach Hill, aproximam-se do fervilhar rítmico punitivo do trash metal. “Fuck praise, all it does is pay my bills.”, urra MC Ride na segunda secção desta mixtape(?) constituída por uma só faixa de vinte e picos minutos, enquanto o mais cliché dos ritmos boom bap goteja, reverberante, pelas pegadas lamacentas deixadas no marchar militarista do gordo e distorcidíssimo teclado. A maior perversidade dos Death Grips em Steroids encontra-se nesta polarização paradoxal, esta ambivalência incólume ao criticismo (mais do que nunca): quanto mais confrontacionais e directos, mais opacos e inescrutráveis – seja o ponto de partida da análise as letras ou os instrumentais.
Portanto, como seria obviamente não-esperado, uma abismal ruptura se sucede na terceira secção, onde Ride abandona as faux-reflexões existencialistas por alusões a banhar-se numa mulher tal fosse “bathory” – que tanto podemos interpretar como a reputada banda de black metal ou o outrora poderoso (e incestuoso) clã húngaro Báthory, famoso por, no auge do seu poder nos sécs. XVI e XVII, ter entre a sua árvore genealógica sádicos, satânicos e bruxas. Esta e outras macabras analogias de Ride, cercadas por um pisotear massivo house, percutido até exaustão nas fendas que se abrem pelas ziguezagueantes teclas, instigam o amedrontamento absoluto de quem ouve.
Não obstante, é de denotar que sobre o avassalador deboche sónico e lírico se esgueira uma verdade conspícua: a superlativa beleza intemporal de uma fotografia poderá ser encontrada nas brechas da tez fuliginosa apocalíptica, na devastação conflituosa de uma guerra ou motim. Na quinta secção de Crouching Tiger Hidden Gabber Megamix, abrigando-se da descarga marcial da bateria-metralhadora e dos morteiros-teclados, do minuto 15:13 ao 15:25, um lindíssimo teclado na veia ambient house dos anos 90 irrompe em câmara-lenta, procurando evadir-se ao apocalipse ardente que o rodeia. É rapidamente exterminado. Estenda-se este sentimento reverente à delicadeza de ferreiro – não obstante delicadeza – nessa benesse aos ouvintes que é a melodia pegadiça de teclado ululante na quarta secção. Death Grips são mestres do caos, não da aleatoriedade – mais míssil-teleguiado do que bomba atómica – e há uma dúbia e mui ténue beatitude, ou pelo menos uma agradabilidade estética, não só no conteúdo musical destes preciosos fabricos, como a sua coexistência polida e livre de atritos com a cacofonia que os rodeia.
Steroids é um ruidosíssimo monstro sónico, impenitente e lepidamente demolidor, onde as faixas(? suites? partes? movimentos? secções, como anteriormente foram mencionadas?) sangram e se sufocam por outras adentro, em 22:31 minutos isentos de respiração. À semelhança de Fashion Week ou Interview 2016, é um lançamento entre álbuns distribuído gratuitamente para manter seguidores e fãs a salivar por projectos futuros. Todavia, houve muito mais a reportar neste registo do que nessas duas colecções interessantes, porventura de impacto diminuto, de instrumentais.
Se bem que é notável a ausência de um momento em par com os mais altos picos melódicos (ou memoráveis) da banda, até aqui, tudo o que lançaram para o mundo eram brutais murros no estômago. Ao invés, Steroids é punhalada no abdómen chibatado pelos maiores sádicos do nosso contemporâneo: um manifesto à raiva, à apatia despudorada, feito por gente que é, sem sombra de dúvida, completamente fodida dos cornos. A única certeza que os Death Grips verdadeiramente nos deram no passado e continuam a dar hoje, mais do que nunca, é que nada nem ninguém se equipara ao que fazem. Não aguentaríamos se tal não fosse o caso – haja misericórdia.