O quarto disco dos Converge, Jane Doe, é um casamento feliz entre o punk hardcore e o metal extremo. Para quem gosta de saborear o apocalipse no langor de um fim de tarde.
No início dos anos 80, o hardcore e o metal andam de costas voltadas. Tudo muda na geração seguinte com o Headbangers Ball. Mesmo os putos do skate e do hardcore, sempre com a revista Thrash amarrotada na mochila, consomem metal através da MTV. Os Converge – de Jacob Bannon e Kurt Ballou – formam-se em 1990 neste caldo: punks no coração mas com os Slayer e os Death também nos headphones. Não se revêem no hardcore da velha guarda, demasiado purista para o seu gosto (e a cena de Boston é das mais sectárias). Querem reinventar a tradição, cruzando-o com o peso e a técnica do metal extremo (e o que mais lhes der na gana).
Os primeiros esforços não são especialmente bem conseguidos (os três primeiros discos são um bocado esquecíveis) mas na entrada para o novo milénio os astros começam a alinhar-se. A nova secção rítmica é a super-cola que faltava: o baixista Nate Newton ajuda na escrita de canções e o baterista Ben Koller é imaginativo como poucos. Tudo começa então a fluir. O quarto tomo, Jane Doe, de 2001, é o primeiro grande disco dos Converge e a sua inegável obra-prima.
Porém, o seu estatuto de ornitorrinco – metade, hardcore; metade, metal – gera então repulsa em ambas as tribos. A ausência de cabelos compridos, roupa negra e imaginário maléfico confunde os metalheads. O tecnicismo e as letras ultra-pessoais, abertamente não políticas, baralham o pessoal do punk. Os Converge pertencem a todo o lado e, portanto, a lado nenhum. Acontece que a verdade estética vem sempre ao de cima, é uma lei do belo. Aos poucos, vai-se perguntando em surdina: já ouviste o Jane Doe?
É um disco de separação, Blood on the Tracks em ferro fundido. Os gritos agudos de Jacob Bannon, qual guincho de gato pisado sem querer, são – quase sempre – indecifráveis mas de uma coisa temos a certeza: o homem anda amargurado. A ironia é que as letras escritas no livrete – que quase nunca correspondem ao que é realmente cantado! – são literatas, inspiradas na poesia romântica inglesa, em total desacordo com o chio estridente de Bannon, mais gaivota zangada do que Keats a ajeitar a camisa de linho. Esse lado de profunda catarse emocional tem raízes no emo de primeira vaga à Rites of Spring (não confundir com os My Chemical Romance da vida!). Com uma diferença: a influência do metal extremo alavanca agora tudo para níveis inéditos de violência emocional. Jacob também desenha a capa, elevada a ícone visual pelos fãs, tatuada e estampada ao quilo nas feiras punk (compre dois hoodies, leve três).
O guitarrista Kurt Ballou é o principal escritor de canções e também dá uma perninha na co-produção. A sujidade punk das texturas – e um horror sadio a acrobacias exibicionistas – disfarça o seu tecnicismo, muito acima dos padrões típicos do hardcore. Não há solos de guitarra em Jane Doe mas há riffs portentosos que derrubam paredões. Ballou faz o complicado parecer simples e esse é o seu grande trunfo.
O baixo de Nate Newton é discreto mas eficaz, habitualmente sem dar nas vistas. Há excepções para confirmar a regra, como o gingar inesperadamente groovy de “Hell to Pay” e o baixo distorcido de “Thaw” guilhotinando pescoços (vai ser o diabo para limpar as nódoas de sangue).
Estamos em crer, porém, que a bateria de Ben Koller é a arma secreta de Jane Doe, sempre inventiva, sempre inesperada, sempre colorida. As suas síncopes são tão vivas que parece que jorram melodia. Podemos passar o disco todo só a prestar atenção à bateria que nunca nos aborrecemos. Os compassos que não lembram ao diabo e as guinadas rítmicas absurdamente precisas dão uma sofisticação quase jazzística ao disco.
Uma advertência: Jane Doe não é para qualquer um. Quando é pesado e atonal é mesmo muito violento e caótico. Só quem possui um amor genuíno pela música extrema é que tem estômago para a coisa. O ingrediente mais indigesto é, talvez, a voz de pterodáctilo piurso por ter esbarrado contra um poste. Mesmo para os melómanos rijos não é um disco que entre à primeira, são precisas muitas demãos até a sua estranha beleza ir emergindo (só então a sua estética apocalíptica se entranha). Jane Doe sabe a último dia do mundo, quando tudo desaba de uma maneira grandiosa, quando transformamos a pena de nós – e o ódio à humanidade – numa imponente epopeia.
Não se pense, porém, que só há violência extrema em Jane Doe. O mais comum é o compromisso, um delicado equilíbrio entre melodia e ruído, rubis brilhando, ufanos, no meio do lodaçal. A sequência do disco também é exemplar, alternando a feroz brutalidade com ilhas de delicadeza arrastada.
Ainda bem que uma miúda gira partiu o coração a Bannon. Sem estes desacertos do mundo não haveria a poesia maldita deste disco. Mais vale criar beleza, sofrendo, do que a indolência de uma alegria infértil. Obrigado por tudo, Jane Doe.