Um dia, há muitos anos, fiz uma lista das bandas que teria obrigatoriamente de ver ao vivo. Ao longo de pouco mais de 15 anos a ver concertos e a guardar religiosamente cada bilhete, cada pulseira, cada flyer ou até meio maço de tabaco assinado pelo Scott Kelly numa tarde de calor intenso em França, fui riscando nomes. De tempos a tempos vou acrescentando nomes novos, mas há um que continua na lista, imaculado e não riscado – Mare. Deixem-me roubar-vos uns minutos e falar-vos dos Mare.
Os Mare entraram na minha vida como entram tantas bandas nas nossas vidas: um amigo disse «tens de ouvir isto». Passaram 10 anos desde a edição do EP homónimo destes tipos do Canadá, e ainda hoje encontro pouquíssimas pessoas que os conhecem, à parte do amigo que mos apresentou e dos amigos a quem os apresentei.
Histórias de lado, os Mare eram um quarteto do Canadá com histórico no mathcore (o vocalista, Tyler Semrick-Palmateer, vinha dos The End), com um EP self titled no bolso que a Hydra Head editou em 2004. Este homónimo tem tanto de curto como de poderoso. Têm dúvidas? «Anisette», a primeira faixa, ainda hoje é das músicas mais pesadas e com o efeito murro no estômago mais angustiante, mais arrepiante e mais sofrido que já ouvi. Mas se «Anisette» nos arrasta aos pontapés sem qualquer tipo de misericórdia, «They Sent You» é celestial, com os momentos iniciais a fazer lembrar os maudlin of the Well e os Kayo Dot, mas a levar a abordagem ao jazz ou até aos próprios detalhes da instrumentação clássica a outro nível, já para não falar da afinação destruidora das guitarras, num sludge doom de nos fazer cair o queixo. «They Sent You» soa grande e cresce ainda mais para se tornar gigante e devastadora, uma espécie de tempestade que inevitavelmente vai acalmar. E acalma, e temos tempo para respirar em «Tropics», onde os Mare parecem largar este sludge carnívoro com que nos abalroaram de início. É a segunda face de Tyler Semrick-Palmateer, num registo arrastado, menos intenso, não menos dramático. Mas «Tropics» leva-nos de volta para os arrepios da faixa de abertura para «Palaces», e estende-se num devaneio que culmina com o regresso de Semrick-Palmateer a plenos pulmões, a levar tudo à frente sem cerimónia, e, sem deixar de ser inexplicavelmente bela na sua fúria, conduz-nos até «Sun For Miles», a embalar-nos durante três minutos, a fazer-nos acreditar que acaba tudo bem, mas não se deixem enganar: ao fim de 20 e poucos minutos de pancada, os Mare não têm pena de ninguém.
Após este EP, falou-se num longa-duração. A expectativa era grande, se o EP era assim, um longa-duração seria sublime. Eu esperei, esperei até perceber que isso não iria acontecer e, como tal, os Mare iriam continuar por riscar na minha lista (ir ao Canadá vê-los não me ficava nada em caminho).
Passaram 10 anos desde que os ouvi pela primeira vez e não voltei a encontrar nenhum trabalho com tamanha intensidade, com tamanho peso e que me deixasse arrepiada e deslumbrada de todas as vezes que o oiço, e, sempre que o faço, esforço-me para encontrar pontos fracos; não consigo. É um 10 em 10.