Dois concertos encheram a noite de ontem, no Coala Festival Portugal. Xande Canta Caetano e o camaleónico Ney Matogrosso arrasaram.
Se fecharmos os olhos, a voz que ouvimos é a de uma menina-mulher que nos anos 80 enchia os nossos corações de muito amor e rock. Está límpida, a voz de Lena, água em copo de cristal. Se o tempo passa, e passa mesmo, na nossa querida Lena d’Água esteve ausente, e aterrou ontem em formato de “vigaro cá, vigaro lá” e na pop certeira de “olhó robot”, numa espécie de nostalgia de those were the days. Agora, décadas passadas, a presença em palco é igualmente vivida e a energia pode promover apagões peninsulares num ápice. Som pujante, dela e de mais seis músicos em palco. “O que fomos e o que somos”, disse ela entre canções. E está certa. A canção diz isso e nós sabemos que assim é. Agora e até a palavra sempre permitir. Estamos juntos, Lena. És mesmo nossa. “Se há um caminho perfeito / Ele só pode ser assim”. Isto é mesmo verdade, não é nostalgia por escrito: que belo concerto a dar-nos as boas vindas à edição do Coala deste ano, sem demagogias feitas à maneira, tudo filé mignon. Só hits, mega hits que passavam na rádio e que não passam agora, ainda gostaríamos de saber a razão.
“Sempre que o amor me quiser” é hino com lugar cativo em qualquer coração, “como uma chama” que não “se esquece”. O concerto ia avançando, mas “sem pressa, devagar, tudo se faz / sem pressa, sem pressa e a vida vem atrás”. “Deixa lá”, Lena. A vida é mesmo assim: um concerto que se faz em vários palcos e em vários tempos. Ontem foi o nosso 2 em 1.

À hora e minutos certos, Xande Canta Caetano começou a desfilar canções tão eternas como únicas. “Muito Romântico”, “Luz do Sol” e “Qualquer Coisa”. Com “Reconvexo” e “Alegria, Alegria” foi o delírio total. Bahia, Santo Amaro e Rio em Cascais no swing de Xande! Caetano é mesmo deus e o mundo sabe disso. Xande foi, ontem, o seu melhor apóstolo. Maravilhoso e intenso porque “Deus não quer” que fiquemos mudos. Em palco, uma festa de 10 elementos, no público… sorrisos e vozes cantando versos e mais versos que todos sabemos de cor. “Força Estranha” foi tão vizinha e estranha (do génio de quem a criou) como sempre e como sempre será. Quando Xande de Pilares apresentou a sua extensa banda, houve um momento de descarga de emoções. Depois, imaginem só, “Desde que o Samba é Samba” arrebentou. Explodi, desintegrei-me em pequenos imaginários de anos e anos de ser próximo do grande mestre, do maior de todos, Caetano Emanuel Viana Telles Veloso. “Trilhos Urbanos” (sim, “onde o Imperador fez xixi”) foi contagiante, claro. Ainda o sol raiava e já a audível “Lua de São Jorge” despontava, bonita, com sotaques de som de samba. Em “Odara”, já há muito que estávamos no planeta Caetano, numa viagem sem retorno. Depois, “Tieta do Agreste” e, para finalizar, a única canção que não é de Caetano. “Tá Escrito”, que levou todo o mundo à mais louca das loucuras. Alguém tem de trazer este show ao Coliseu. Urgentemente.

Um pouco mais tarde, tudo se hip-hopificou com Criolo. Versos e referências a Drummond de Andrade a abrir (a eterna “pedra no meio do caminho”) com “canta com nóis”, numa mistura de linguagens, ritmos, estilos que sabemos serem a base desse músico de nome crescente no país irmão. Multidão maior ainda, sempre em crescendo, no Hipódromo Manuel Possolo. Foi a primeira vez que ouvimos o habitual “façam barulho” no dia de ontem. Tudo a bater certo, tudo ok. Orixás, voz sampleada de Tom Zé (outro mestre que costuma “estar louco e certo” ao mesmo tempo), axés lançados ao ar com alguns gritos de revolta, “machados de Xangô”. No palco, fazia-se a arte dos tempos modernos (já não tão modernos assim, mas por comparação com o samba de horas atrás…) para milhares de mãos no ar, “família” de energia positiva. Geleia geral, triturando o que já foi feito para um novo prato sonoro servido quase à hora do jantar. Temperos que conhecemos bem, que alguns devoram e que outros deixam à borda do prato. E não é sempre assim com tudo? A pergunta é retórica, evidentemente. Criolo disse, em referência ao concerto anterior, “Nós amamos você, Xande!” Nós também amamos. Pouco depois Dino D’Santiago entrou por instantes no palco para abraços e apoio, ouvindo-se cantar Marley, o Bob que todos também amamos. Bateu uma saudade de Max de Castro, Chico Science, Otto, do mangue beat. “Não existe amor em SP” e “Aqui ninguém vai pro céu”. Foi mais ou menos isto.

“Eu quero é botar meu bloco na rua” foi a esperada entrada do camaleónico Ney Matogrosso, estrela maior da noite invernosa (ventosa e muito fria) de ontem. Samba e rock com “Jardins da Babilónia”, da divina roqueira Rita Lee Jones e lembrando que a “saúde não é de ferro, não”. Ney Matogrosso é uma lenda da música do mundo, não apenas da MPB. Aqueles que conhecem a figura e a sua obra discográfica, desde o tempo dos Secos e Molhados até aos dias de hoje, concordarão com o que aqui dizemos. A voz continua intacta (começámos este texto a fazer idêntica referência e terminamos da mesma maneira), o jeito e as poses de serpente indomável permanecem as de sempre. Continua “homem com H”, driblando modas, conceitos e os tempos mais ou menos difíceis de qualquer artista. Por onde atua, há multidões à sua espera e é fácil perceber as razões. Espetáculos bem montados, onde nada falha, repertórios seguros, mesmo quando o risco sempre foi o seu nome do meio. “Pavão misterioso, um pássaro formoso” de muitas décadas, “tudo é mistério” e paixão nas histórias que tem para contar.
Um dos grandes momentos do concerto foi “A Maçã”, do mítico Raul Seixas e logo depois exigiu que tirassem a fumaça do palco, que lhe provocava vontade de tossir. “Pode tirar, que não faz falta”. Uns instantes depois, atacou a eterna “Iolanda”, por quem nos perdemos “eternamente de amores” há larguíssimos anos, em muitas vozes, como as de Chico e Simone, por exemplo.

Outro ícone recordado ontem, foi Erasmo Carlos, através da velhinha “Melhor que Seja Eu”. Excelente, mesmo. Empolgante, até. Muito bom. Inesperada, a inclusão de “Último Dia”, de Paulinho Moska, na lista de canções do concerto. Bem diferente da original, com roupagem quase carnavalesca. Resultou, assim como a muito roqueira “Sangue Latino”. Intensidade e firmeza, com guitarras com riff de “I Can’t Get No Satisfaction”. Soberbo!
No remate final, “Como 2 e 2”, belíssima e eterna. Depois, comoção a rodos com “Poema”, de Frejat, lembrando a voz de Cazuza nos idos tempos de um outro mundo, já tão distante e sem retorno. “Balada do Louco”, de Os Mutantes, fez de todos os presentes o coro ideal para fechar a noite.
Ney é grande, mas nunca sabemos bem a sua dimensão, porque nos surpreende sempre. Sempre! É da sua essência, e ainda bem. Já era quase meia noite e “Pro Dia Nascer Feliz” foi o fim perfeito. Dança e sorrisos. Uma onda de prazer que só existe quando se vê e ouve música ao vivo. Viva a música, viva Ney!
Fotografias: Rui Gato


























