Há quem ache que a tradição é lei e que desrespeitá-la é crime grave. Depois há a Casa Guilhermina, o mais recente disco da fadista Ana Moura.
Sete anos depois do lançamento de Moura, o seu último disco de originais, a ribatejana que Miguel Esteves Cardoso chegou a comparar com Amália Rodrigues deu uma volta de 180º e mostrou que mexer no status quo é bom, saudável e abre novos e mais completos caminhos. Muito se diz que o Fado é a banda sonora oficial de Portugal mas a incontornável ligação às antigas colónias africanas, por exemplo, nunca foi tão presente como neste Casa Guilhermina. E isso vê-se logo no abrir do disco, com “Mázia” (Paulo Flores canta ao fundo, a certo momento desta canção), uma homenagem à prima de Ana que morreu recentemente onde o semba se funde com a voz desta cantora que por mais que possa tentar nunca conseguirá tirar o fado da garganta. “Calunga” segue a mesma toada, funcionando como uma espécie de mashup de uma canção com o mesmo nome que Amália Rodrigues chegou a cantar e o cartão de visita de Bonga, “Mona Ki Ngi Xica”, tudo envolvido num beat adornado de guitarra portuguesa aqui e ali. A africanidade desta Casa Guilhermina – nome que serve de homenagem à avó de Ana Moura – torna-se menos óbvia depois de “Birim Birim (Interlúdio)”, uma fantástica interpretação de outro clássico, desta vez de Ruy Mingas. Se Moura sempre falou das suas raízes africanas, nunca elas se ouviram tanto como aqui.
Daqui para a frente entramos na fase mais “pop” do disco, aquela que aparenta ser a menos sumarenta ou mais corriqueira, com “Andorinhas” a ser uma leve excepção (plena de portugalidade musical, com toques quase de rancho). “Corridinha” é a música bem disposta para passar na Rádio Comercial e mais tarde virar jingle de anúncio. “Arraial Triste”, apesar de ser uma boa canção pop, carece de uma profundidade maior, seja musical ou lírica – e faz muito lembrar alguns trabalhos mais antigos de Pedro Mafama, seu companheiro, pelo menos instrumentalmente.
Respiramos de novo – ou falha-nos a respiração, como queiram – com a lindíssima “Minha Mãe (Interlúdio)”, talvez a canção mais parecida ao fado que estamos habituados a ouvir e reconhecer. Daqui surge mais uma vaga de africanidade com “Jacarandá”, uma kizomba sensual que percede “Sozinha Lá Fora”, música que consegue encapsular a sensação sempre latente na cultura fadista de amor perdido, mágoa e saudade. Um dos pontos mais altos do disco.
Merece destaque “Agarra em Mim”, canção que Moura divide com Pedro Mafama e que é mais outro sumarento naco pop, tesudo e viciante com o ritmo hipnótico tão típico de uma kizomba; assim como “Estranha Forma de Vida”, que como o próprio título indica é uma versão do fado icónico que Amália imortalizou e gravou no subconsciente de todos os portugueses, dos já falecidos, dos vivos e dos que ainda nem nasceram. Esta música é muitissimo bem trabalhada e talvez o melhor exemplo de como a tradição, por mais icónica que seja, aceita a modernidade, joga bem com ela quando as juntam de forma respeituosa. Bom momento.
Casa Guilhermina é por tudo isto o espelho de um Portugal plural, ciente das suas raízes mas disposto a olhar para à frente com esperança e entusiasmo, sem medo de reconhecer as suas ligações e influências passadas, os seus laços de sangue, memória e trauma. Casa Guilhermina é a prova de que Ana Moura é mais do que “aquela que cantou com o Prince uma vez”, de que é uma artista em evolução, disposta a abrir-se ao mundo, passado e presente, e a arriscar – ainda para mais numa área sempre tão quadradona e conservadora como o fado. E Casa Guilhermina é também o teste de fogo de Pedro da Linha, jovem produtor deste disco que se arrisca a vir a ser ainda maior que Branko, por exemplo, na forma como electrifica música africana ou como junta fandangos e beats. Uma salva de palmas para ambos. Uma salva de palmas para Casa Guilhermina.