Depois de três discos de estúdio e de mais três ao vivo com a roqueira Banda Cê, Caetano Veloso deu por terminada mais uma fase camaleónica da sua extensa carreira artística. Depois de Cê e Multishow Cê ao Vivo, Zii e Zie e Zii e Zie MTV ao Vivo, chegou Abraçaço, no passado ano de 2012, complementado agora com a respetiva apresentação alive: Multishow ao Vivo – Abraçaço, de janeiro de 2014. O disco que fecha a fase mais recente do mestre baiano é uma festa, e uma vez mais recorda canções muito antigas, quase perdidas no tempo, misturando-as com as recentemente feitas para a trilogia que funde rock, eletrónica, samba (transambas), bossa nova, tudo feito à maneira ínvia e caleidoscópica do pai maior do Tropicalismo brasileiro. Caetano está e estará sempre, para mim, em estado de graça. A mais recente prova dessa circunstância chegou-me às mãos (deveria dizer coração, mas temo a eventual perceção errada que poderiam atribuir ao termo) faz poucos dias. Neles, em Caetano e no disco, tudo é vigor, energia, temperança, precisão, proeminência estética, luminosidade e sombra densa. Caetano continua, no cimo das suas sete décadas e picos de existência, a apontar caminhos inusitados, rasgando, remendando a filigrana do seu passado musical, atualizando-a transcendentalmente. Nada do que digo me parece exagerado, apenas pela simples razão de ser mesmo verdadeiro este esboço de retrato acabado de traçar. Caetano Veloso continua a estar para além dos deuses! E fica a pergunta: o que fará ele a seguir? Só ele (ou nem mesmo ele) saberá neste preciso momento a direção do próximo passo. Enquanto durar a tournée de Abraçaço (desculpem-me o galicismo, mas apeteceu-me usá-lo depois do italianismo de Zii e Zie, por contraste com a nossa língua materna, pois Caetano é do mundo e de todas as línguas) não há que pensar no futuro. Há que aproveitar o presente, que neste caso dá pelo nome de Multishow ao Vivo – Abraçaço.
Das dezanove canções desta apresentação áudio ao vivo, nove estão presentes em dois álbuns da trilogia Cê, chamemos-lhe assim. São elas “A Bossa Nova é Foda”, “Quando o Galo Cantou”, “Um Abraçaço”, “Homem”, “Estou Triste”, “Funk Melódico”, “Quero Ser justo”, “O Império da Lei” e “Outro”, distribuídas por Cê e Abraçaço. Nenhuma de Zii e Zie, o que não deixa de ser um pouco estranho. Nem mesmo existem, no dvd do show que contempla mais seis canções do que as presentes no cd, quaisquer temas do segundo trabalho da trilogia. É pena que assim seja. Adoraria ouvir de novo “A Cor Amarela”, “Tarado Ni Você”, e principalmente “Lapa”… Mas falemos das surpresas repescadas de outros tempos, de outros momentos da carreira de Caetano. “Triste Bahia”, do distante e superlativo Transa, talvez seja a que mais gozo dá (re)ouvir. Ou essa, ou “Alguém Cantando”, cantada por Nicinha, a sua irmã mais velha, no disco Bicho, e agora interpretada de forma menos intimista pelo seu autor. Mas há também a festa suprema de “Eclipse Oculto”, de Uns, o álbum mais amado por Caetano, que quase leva a audiência ao histerismo coletivo. Ou a igualmente festiva “De Noite na Cama” (o público, mais uma vez, parece delirar), também gravada ao vivo em Temporada de Verão ao Vivo na Bahia, disco de 1974, que juntou Caetano, Gal Costa e Gilberto Gil. Mas há mais, muito mais. Caetano grava pela primeira vez a maravilhosamente sambada “Reconvexo”, feita para a mana Bethânia cantar em Memória da Pele. Sabe mesmo bem ouvir os versos iniciais “Eu sou a chuva que lança a areia do Saara / sobre os automóveis de Roma”, acompanhados pela irrequieta guitarra de Pedro Sá, e mais adiante cantar também, juntamente com o público e com Caetano “Eu sou um preto norte americano forte / Com um brinco de ouro na orelha”, e todos os outros versos dessa fabulosa canção tão repleta de referências pessoais e culturais, na tradição tropicalista de outros tempos. Depois, tudo acaba por explodir em alegria com os primeiros acordes de “Você Não Entende Nada” (as recordações que passam pela minha cabeça ao ouvir os versos deste hino, meu Deus… – é mais do que uma simples canção, acreditem), continuando o delírio com a inebriante e ensolarada “A Luz de Tieta”.
Enfim, é muita emoção junta, muita qualidade espalhada no ar, muito deslumbramento que poderemos testemunhar ouvindo-o e vendo-o no próximo dia 28 de abril, no Coliseu da nossa capital. Lá estarei, ficando prometida a reportagem do evento, embora saiba de antemão do medo (sim, medo) que terei em fazê-la, porque Caetano confunde-se com a minha vida, e quando falo ou escrevo sobre ele, faço-o sempre de uma forma apaixonadamente aberta, facto que pode ser, para mim próprio, coisa pouco confortável. Para já, uma vez que esse momento ainda vem distante, é tempo de ouvir este Multishow ao Vivo – Abraçaço, e morrer de amores por ele.