A Mary engravidou e só tinha 17 anos. Para piorar a situação, o namorado teve de arranjar um trabalho na construção, mas como hoje, também em 1980 por Seattle não havia muito que construir por causa do depauperado estado da Economia. A história não lhe parece trágica? Por favor, pare de ler. É escusado. Mais que ter a audição em boas condições, para perceber The River é preciso coração e quem não o tiver funcional e sensível às tragédias que a vida vai apresentando nunca o vai perceber.
Bruce Springsteen nunca deu sinais de pretensiosismo. Nem a música alguma vez foi demasiado enfeitada, nem as letras rebuscadas ao ponto da mensagem se perder em floreados literários, tão dispensáveis como frequentes em quem tenta ganhar estatuto entre os contadores de histórias musicadas. Nos discos de Springsteen as mensagens percebem-se, a música só tem o essencial – e como isso sabe bem – e nem por isso o Mundo deixou de as cantar de cor. Se até 1980 já se podia perceber que Springsteen não seria só mais um, com o disco duplo em que conta a história de Mary, Bruce deu o salto que o faria Boss, o patrão, um dos que ninguém, nem mesmo o mais frustrado dos cantores, arrisca questionar.
Esteve para ser single e se chamar The Ties That Bind. Mas cresceu. Com sobras de The Darkness on the Edge of Town, – “Independence Day“, “Point Blank“, “The Ties That Bind“, “Ramrod“ e “Sherry Darling“ – e músicas testadas na estrada, mas que ainda não tinham merecido o carinho do estúdio ou produção cuidada. E quando juntas, o resultado foi um disco duplo, com histórias da América que, tal como o tom do disco, oscila entre o dançante e o trágico, mas sempre com algo válido para se ouvir. “Two Hearts“, “Out in the Street“, “Cadillac Ranch“, “Crush on You“ ou “Hungry Heart”, ficam no ouvido, convidam a um passo de dança – ainda que também já avisem para a tenebrosa década que se avizinhava – mas nem por isso lhes faltam histórias de famílias, de corações partidos, de vida.
E depois ainda há a história da Mary, na realidade, irmã do cunhado de Springsteen, que todos os que ouviram “The River”, de ouvidos desentupidos e coração aberto, conhecem de cor. Não porque a música, que haveria de baptizar o disco, seja a melhor de Springsteen ou a história seja particularmente original. Apenas porque é uma das primeiras em que se nota o génio absurdo que o patrão tem para contar histórias que todos conhecemos, mas que na maior parte das vezes não temos como contar. O Boss sempre teve, as palavras para a contar, a voz para as cantar no tom certo e o ouvido necessário para as adornar, com uma chorosa harmónica neste caso, só até onde é preciso.
Melhor álbum da carreira do Boss na minha opinião.