Vou começar esta crónica por admitir de forma clara que durante muitos anos da minha vida Bruce Springsteen nunca foi algo que me puxou. Por esta ou aquela razão (sendo a mais forte a capa do álbum Born in the USA) conotei-o como um americano típico, daqueles com armas em casa, bandeira à porta, orgulho no seu país ser o maior do mundo e impositor da ordem mundial. O que só prova que os rótulos são tramados, toldam a visão, impedindo de se conhecer as coisas como elas realmente são. Até porque neste caso a diferença entre o real e o imaginado é tão distante que dói só de pensar. Mas adiante, que nestas coisas mais vale tarde que nunca, reforçando pelo caminho a estupidez na colocação de rótulos sem o devido conhecimento de causa.
Começando por ouvir de forma tardia a obra de Springsteen (e ainda com bastante coisa por descobrir), é este Darkness on the Edge of Town que mais me cativou, cativa, pela sua intensidade, coerência, e honestidade perante a pessoa Bruce que tinha acabado de lançar um muito propalado Born to Run e não pretendia tornar-se um next big thing. Depois há que acrescentar a isto as dificuldades que Springsteen enfrentou nesta altura da sua vida, num longo e difícil processo jurídico contra o seu amigo e manager Mike Appel relacionado com direitos contratuais, que o impediu de gravar novo material durante 3 longos anos. De gravar, mas não de escrever, já que quando finalmente recebeu luz verde para dar início às gravações de Darkness, Springsteen aparece com rascunhos de cerca de 70 músicas. Os membros da E-Street Band, que sempre o acompanham, foram espremidos aos limites da paciência pelas longas sessões de experimentação em cada uma das tais 70 músicas, ainda para mais sem nunca saber quais delas iriam fazer parte do disco. Terá sido porventura a altura mais prolífica de Springsteen, que deu-se ao luxo de ceder músicas enormes como “Because the Night” a Patti Smith e “Fire” às Pointer Sisters.
Só em 2010 foi possível o público ter conhecimento da real dimensão da veia inspirada de Springsteen nessa altura, com a edição de “The Promise: The Darkness on the Edge of Town Story” uma box set com 3 CD’s e 3 DVD de todo o material gravado na altura, bem como um documentário (muito interessante, by the way) sobre o processo de gravação. Estamos a falar de cerca de 15 músicas desconhecidas, mais versões alternativas de várias que aparecem na versão original do álbum.
Mas esquecendo o que não está e focando-nos no que está, Darkness on the Edge of Town é arrasador desde o primeiro minuto, desde o arranque da bateria em “Badlands”, até ao fade final na música que dá título ao álbum. Pelo meio não há uma única música má, o que permite dar-lhe o epíteto de um dos melhores da discografia de Bruce e, como hoje percebo a coisa, parte da história do rock e da música em geral. Pelo meio há, aliás, uma estrondosa balada de nome “Racing in the Street”, elegia que relata a vida de pilotos correndo com os seus carros em vilas, cidades, perdidas pelos Estados Unidos profundos (quiçá baseado no excelente “Two Lane Blacktop”, de Monte Hellman). Pelo meio há um “Prove it All Night” single de estreia e história de um amor que parece que vai mas nunca chega a, com um magnífico solo de saxofone. Pelo meio há um “Streets of Fire”, sobre solidão, sobre não encaixar (“Now I’m wandering, a loser down the tracks”). Há de tudo um pouco, ao sabor da guitarra e voz de Springsteen, ao sabor da magia rítmica que a E-Street Band confere à causa.