Quantos discos precisa um homem fazer até lhe chamarmos Bob Dylan? O vento soprou-nos a resposta.
No primeiro disco, quase sem temas originais, parecia que Dylan era apenas mais um intérprete folk; interessante, é certo, mas apenas mais um. Tudo mudou com Freewheelin’. É aqui que nasce Bob Dylan, o escritor de canções. E graças à sua inteligência e frescura, a folk transborda para fora dos campus universitários e círculos boémios, chegando a toda a gente.
Hoje, Freewheelin’ parece-nos quase antiquado mas na altura foi uma autêntica lufada de ar fresco. Tudo nele era estranho e inovador: o seu radicalismo político, o seu sentido de humor nonsense, a sua vitalidade beatnick, literata e coloquial ao mesmo tempo. Dylan eleva a fasquia, influenciando todos pelo caminho: food for thought para toda uma geração. A fase pueril da pop estava prestes a acabar.
A estética é sóbria, quase só viola e voz, com uma ocasional harmónica a fazer um sublinhado poético. Os dedilhados são simples e belos como um riacho a correr. A voz tem pinta e bazófia: folk, sim, mas já com uma atitude rock’n’roll por detrás. As melodias, muito bonitas, foram quase todas roubadas ao cancioneiro tradicional: a regra, e não a excepção, na folk e no blues. Só mais tarde dispensaria o furto, tornando-se um grande melodista.
Com este disco, Dylan é considerado a voz da sua geração, traduzindo em canções brilhantes os ares do tempo. A guerra e o medo de uma catástrofe nuclear são o tema principal, abordado através de diferentes sensibilidades: irado em “Masters of War”, desesperado em “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, com um delicioso humor negro em “Talkin’ World War III Blues”. “Oxford Town” aponta o dedo à segregação racial no sul. “Blowin in the Wind” é um hino universal de aspiração à justiça, assentando a sua força na sua ambiguidade: Dylan só faz as perguntas e o vento, sempre evasivo, nunca responde coisa alguma. Mas através desta artimanha destrói as certezas da geração no poder e convoca a sua geração a procurar as suas próprias respostas. Em “Times Are A-Changing”, do disco seguinte, Dylan tornaria ainda mais explícito esse chamamento geracional. Mais tarde, no seu período eléctrico, renunciaria a esse papel de porta-voz, mas o mal (ou o bem) já estava feito.
Seriam genuínas as suas preocupações sociais? Os mais cínicos dirão que não, insinuando até que Dylan encenou essa personagem apenas para agradar a sua namorada de então, esquerdista dos quatro costados, filha de pai e mãe comunistas. Estamos convencidos do contrário, que Dylan era de facto um progressista, desprezando sinceramente a guerra, a autoridade e o racismo. Mas era também um feroz individualista, não tolerando que fosse posto ao serviço de qualquer grupo ou ideia. Quando sentiu a sua liberdade artística e pessoal a ser ameaçada, desvinculou-se do movimento como quem evita uma doença venérea. Fica a ironia: foi o menos comprometido dos artistas que escreveu as melhores canções de protesto do seu tempo.
Convém não dramatizar as diferenças entre o Dylan acústico e político e o Dylan eléctrico e introspectivo. É que a maior parte das canções de Freewheelin’ já tem um pendor pessoal. “Bob Dylan’s Dream” é um retrato terno e nostálgico da sua infância, evocando um tempo de inocência que não mais voltará. “Girl from the North Country” recorda com saudade, e sem mágoa, um antigo amor. “Don’t Think Twice, It’s All Right” parece dizer “na boa, amor, continua longe, não há espiga” mas na verdade diz “cruel bandida, deste outra vez cabo do meu coração”. Letras com este grau de sofisticação, com os seus jogos complexos entre texto e subtexto, eram raras na pop do seu tempo.
Na reacção a Freewheelin’ deu-se demasiada importância ao conteúdo. O que importa em Dylan nunca é o que diz mas como o diz. É o poder evocativo das suas imagens poéticas que torna este disco tão inspirador. Ginsberg diria que quando ouviu “A Hard Rain’s a-Gonna Fall” pela primeira vez desatou num pranto, comovido pelo facto de a chama ter sido passada para a geração seguinte. É essa a importância histórica de Freewheelin’: ser o elo de ligação entre a modernidade beatnick e tudo o que veio a seguir.