A vida por um disco! Se fosse possível fazer-se tal operação, um dos que seriamente entraria nessa (impossível) equação seria Minas, o disco em que Milton Nascimento interpretou como nunca a sua terra de coração, transformando-a em onze eternos momentos musicais.
Já por aqui se escreveu sobre esta obra-prima de Milton Nascimento, mas as voltas sonoras da vida fazem-nos regressar muitas vezes aos discos que realmente importam, e essa feliz arte do reencontro acaba sempre por ser muito bem-vinda. Tornar a Milton no ano em que Milton regressa a Portugal (em junho, para a tournée comemorativa do monstro sonoro que é Clube da Esquina) não deixa de ser um feliz acontecimento. Minas é o sétimo disco de estúdio do menino Bituca, carioca de nascimento, mas mineiro de coração. Nele encontramos uma poética muito especial, trabalhada por amigos e músicos que souberam conviver intensamente e sem ceder a pressões editoriais, que aliás eram poucas na Odeon brasileira daqueles tempos. O que Milton, Wagner Tiso, Beto Guedes, Toninho Horta, Nelson Ângelo, Novelli, Nivaldo Ornelas entre tantos outros queriam fazer, era apenas um disco que agradasse a todos os que nele participavam. Minas acabou por ser um milagre sem tempo e sem lugar, embora seja também um retrato da dureza do tempo em que nasceu. As canções e os temas instrumentais permanecem intactos, puros, e alguns deles tornaram-se verdadeiros hinos brasileiros.
“Fé Cega, Faca Amolada”, “Saudade dos Aviões da Panair”, “Ponta de Areia” e “Paula e Bebeto” serão seguramente as estrelas do disco, mas há muita vida para além desses magníficos quatro momentos, sendo que deles já se foi escrevendo alguma coisa neste site, e por isso as deixamos de parte neste texto. É que Minas também tem “Beijo Partido”, canção que terá tido origem numa desilusão amorosa de Toninho Horta. Os versos, bonitos e certeiros, levam-nos por uma sofisticada harmonia, obrigando-nos a cantar também (é irresistível, sobretudo se conhecermos bem a canção) a desilusão sentimental do extraordinário guitarrista de Belo Horizonte. Dizem assim: “Eu não gosto de quem me arruína em pedaços / e Deus é quem sabe de ti / e eu não mereço um beijo partido / hoje não passa de um dia perdido no tempo”. “Gran Circo” é outro belíssimo e estranho tema, melódico (a espaços) e épico também, resultante de uma feliz parceria com Márcio Borges e contando com os vocais da ainda jovem Fafá de Belém. O toque especial da poesia de Minas Gerais diz coisas tão bonitas como estas: “Vem chegando a lona suja / O grande circo humano / Com a fome do palhaço / E a bailarina louca”. Depois há ainda “Trastevere”, o bairro da cidade eterna (Roma), com o seu saltitante piano inicial, antes dos versos “A cidade é moderna / Dizia o cego a seu filho / Os olhos cheios de terra / O bonde fora dos trilhos / A aventura começa no coração dos navios”. O tema é bastante experimental, mas há nele uma identidade muito particular que nos cativa, sobretudo se o soubermos escutar atentamente. As vozes de Nana Caymmi e Joyce também nele se fazem ouvir. Segue-se “Idolatrada”, uma espécie de rock experimental, com “Paula e Bebeto” como música incidental, a primeira parceria entre o carioca-mineiro e o baiano Caetano. Já na parte terminal de Minas, a quase instrumental “Leila (Venha Ser Feliz)” confere ao álbum um colorido jazzístico de realce, terminando com “Simples”, “E aquela criança / Ali sentada” dos versos finais ainda hoje a imaginamos maravilhada com tudo o que de belo se ouve nesse trabalho. A capa traz a cara de Milton Nascimento em formato grande, de maiores dimensões do que as reais, e é uma das muitas imagens icónicas de Cafi, fotógrafo recentemente falecido e autor de mais de trezentas capas de discos da música popular brasileira. A mensagem é clara: o disco é a cara de Milton nos tempos conturbados de meados dos anos setenta.
É sempre bom voltar a Minas e demorar nele o tempo suficiente para lhe entender a mestria. No encarte do disco, o conhecido trenzinho desenhado por Milton Nascimento parece deixar a ideia de que vale a pena entrar nele e seguir caminho até Geraes, disco gravado no ano seguinte e que é uma espécie de irmão gémeo de Minas. Com ele, o percurso ficará completo, mas por hoje a viagem termina por aqui.