Mudar de faixa sem fazer pisca, atravessar a estrada sem olhar para os dois lados, parar de repente em plena autoestrada: mudanças, bruscas e perigosas, que põem a segurança rodoviária em segundo plano, arriscando: demasiado ou na quantidade certa? Opções conscientes e planeadas ou desmedidas e sem pensar? Quem não soubesse melhor quase podia dizer, num claro e tresloucado devaneio, que este discurso é um digno de quem está a tirar a carta (pela segunda vez?). Mas a vida, sumarenta e adocicada como é, tem o condão de ser tão versátil como uma carta de condução da categoria DE (seja camião, carro ou carrinha, está dominado). Partindo daí, sinto-me em pleno direito de metaforizar o código da estrada, aplicando-o num plano alargado, ao novo rock, num mais estreito, ao novo álbum dos The Black Keys, Turn Blue. Ponham o cinto de segurança e acompanhem-me.
Deambulando pelo sinuoso e sensível mundo do Rock, começo a ter cada vez mais a certeza de que hoje, quem o faz, divide-se em duas grandes categorias: os que se estão a cagar e os que não se estão a cagar.
Com um ou outro caso particular que foge desta categorização, cada vez mais se distingue quem faz por fazer, por gostar de fazer, por o fazer ingenuamente, no strings attached, com os calculistas, espertos, que conseguem conciliar o sexo, drogas e rock & roll com o ouvido formatado, atrofiado por anos de música medíocre/má, alimentada à bruta por quem quer encher festivais e outros circos tais. O rock renasceu e continua a renascer, sem dúvida. Assistimos a uma época fecunda em guitarras e baterias sem medo de gritar aos ouvidos sons que Page, Harrison, e outros semideuses fizeram nascer: até as suas variantes começam a mostrar-se de novo, como o novo psicadelismo ou o revigorado post-rock. Feito sem peneiras nem segundas intenções, este é o resultado do trabalho de quem faz música. Só isso. Faz música.
Mas há um outro lado, mais pantanoso, incerto. Os Artic Monkey’s ou… Black Key’s que hoje roubam headliners que antigamente seriam de Robbie Williams ou Kylie Minogue. Depois de uns bons 20 anos de hegemonia ofuscante e plástica, a Pop começa a ser chutada de cena. Mas será mesmo isto?
“Pop” vem de “Popular”, “Popular” sendo de fácil aceitação, valorizado por quase todos, adorado em concertos de estádio cheio. Os mesmos Artic Monkeys e Black Keys desta vida, que hoje remetem os antigos lordes da Pop para festivais “Remember qualquer coisa” estão nos píncaros da sua visibilidade. Rockeiros por auto-denominação, fazem crer que o sonho de Ozzy, Berry ou Cobain, finalmente, se realizou: o Rock é o novo Pop.
Milhões de pessoas sem medos, ousadas, de calças de ganga rotas e camisas de flanela a esgotarem, desalmadamente, os stocks mundiais de drogas, tabaco e álcool. Cada vez menos pessoas a aturarem falsos moralismos e a imporem-se. A música a ser sentida, orgânica, pura e forte… como deve ser. Mas não. Os jovens de cabelo comprido e mal lavado, rápidos a desembainhar um manguito vigoroso, são substituídos por pré-adolescentes com t-shirts de bandas que conhecem de nome e mentalidades de quem está mesmo a precisar de … mentalidade.
Deixem-me ser claro: não advogo o cenário do grunge pós-apocalíptico que descrevi. Pelo menos não na sua totalidade (algumas pessoas precisam mesmo de um dedo do meio). Apoio a música e quem a sente como deve de ser, independentemente de quem seja ou como seja. Simplesmente acho que devemos ter cuidado com as categorias que damos às coisas. O Rock está mais presente, sem a mais pequena dúvida, mas ainda não voltou. O Pop-rock, esse sim, está de regresso: em força e modificado.
Mais perto do segundo nome do que o primeiro, sim, mas não deixa de ser Pop-Rock. Alex Turner foi dos primeiros a perceber isso e a explorá-lo ao máximo (que não fiquem dúvidas, sou seu fã incondicional e sim, gostei bastante do AM) e agora, agora é a vez de Dan Auerbach e Patrick Carney explorarem esse novo mundo.
Turn Blue é calculista, inteligente e venenosamente catchy. Como se de um pedaço de tecnologia de ponta se tratasse, cada composição é feita à medida, milimetricamente estudada para nos soar bem. Generalizando, grande maioria de nós conseguiu ultrapassar e aprender alguma coisa com o trauma de tanto ano de pop rasca. Ficámos mais exigentes e, aqueles que ainda não se tinha apercebido, começaram a ver que o rock têm mais que se lhe diga que um piano Casio. A maior parte do público, mais educado, hoje opta por algo ligeiramente mais desafiante, mais elaborado, mais parecido com… música. O Rock é isso. Procede-se então a uma mutação de géneros, onde a guitarra distorcida é quase molecularmente alterada para “entrar melhor”, a bateria domada para ser menos agressiva.
Neste álbum sente-se isso – basta ouvir o seu primeiro single para se tornar óbvio. Os Black Keys, outrora jovens promessas do Rock de outros tempos, apresentam-se domados, com mais gel no cabelo e com roupas melhores. Temos mais som inorgânico do que costumávamos ter, composições mais simples, com menos camadas. Baixo, bateria, guitarra e um ocasional teclado mostram-se tímidos, contraídos, como se estivessem a ser forçados a preencher formas que não lhes são naturais. A voz de Dan mantém a ligação aos bons velhos tempos em que a sua música sabia a bourbon e casacos de ganga esfarrapados. As letras (nunca de grande destaque), continuam na mesma linha, sem serem muito evoluídas. A única altura em que se sente este álbum a mostrar genica, garra, é nos solos de guitarra que volta não volta surgem para nos acordar.
Destacando músicas, impossível de não falar em “Fever”, um gigantesco e redondo flop, se tivermos em conta os trabalhos mais antigos da banda – como perdoar um single de Black Keys onde quase não há guitarra?! “Gotta Get Away” é um equivalente musical a uma hóstia: sensaborona e sem graça, quase caindo no campo da palermice à conta daquela letra – “I went from San Berdoo to Kalamazoo /Just to get away from you”.
Salvando o Turn Blue de um calamitoso naufrágio surgem faixas como “Weight of Love” e “In Our Prime”, lembretes que nos fazem não esquecer que os Keys são do Rock. Muito boas, estas duas.
Tentei encontrar um termo sério para conseguir caracterizar este trabalho. Um termo que fosse respeitador e minimamente profissional. Pensei em “cansativo”, “ingénuo”, ou simplesmente “fraco”. A verdade é que não consegui ser sério, a palavra que o melhor descreve é “panhonhas”. Turn Blue, o mais recente álbum dos norte-americanos The Black Keys é um álbum “panhonhas”. Sente-se uma vontade muito grande de domar aquilo que neles é inato: fazer Rock & Roll. Sente-se fraqueza e pouca criatividade. Com devidas (poucas) exceções, é um trabalho que, vindo de quem vem, deixa a desejar.
Comecei por vos falar de riscos. Rodoviários foram os usados como exemplo, mas acho que agora já estou em posição de conectar a esse exemplo com o disco em análise. Mudar uma sonoridade é um risco muito grande, sempre foi. Não só na estrada mas também na música, uma decisão pouco ponderada pode acabar com uma vida/carreira. Não que esse caso se aplique para os BK, mas a verdade é que não o é por muito pouco. Na tentativa de crescer, ganhar e faturar mais, a qualidade é a primeira a ir pela janela, e isso é perigoso. A transição de um género para outro, ou, como neste caso, a “popização” de um rock robusto, já com um considerável caudal de seguidores, pode ser demasiado radical e pode sair terrivelmente gorada. Este é o perigo que vejo nesta nova vaga de popularidade que se tem assistido no mundo do Rock atual. Medo de que bandas que nos enchem o peito e nos espicaçam a base do pescoço, sucumbam perante a vontade fútil e vaidosa de encher mais concertos que o vizinho. Medo que a quantidade ponha em causa a qualidade. Os Artic Monkeys conseguiram dar o salto, os Black Keys por muito pouco, não o falhavam, quem será o próximo? Quanto tempo faltará até termos White Denim ft. Imagine Dragons? Jack White a cantar uma versão de Lana del Rey? Eu sei, assusta. Parte de mim acredita que quem é bom o será sempre, não irá sucumbir com facilidade a estas tentações, mas depois oiço “Work Me” de Chulahoma (2006) e, logo a seguir, “Fever”, e começo a roer as unhas.
Agora vou-me calar antes que tenha de adicionar “Querido diário:” ao início deste texto. Deixo só mais esta mensagem, pelo bem da humanidade que gosta de música… quer dizer, Música: Dan, Patrick… e um pouco de Rock?
Ouçam Turn Blue aqui.
A utilização do apóstrofo no nome Artic Mokeys foi propositada. Não se pretendia falar da banda propriamente dita mas sim fazer referência a um grupo de bandas que com ela são parecidas – como o nome já acaba em”s”, não se iriam colar dois seguidos, não? Se reparares, o nome da banda surge de novo, mais à frente, e já escrito no seu formato normal. Talvez reescrevendo seja mais fácil de entender – “As várias bandas que se enquadram no estilo dos Artic Monkeys ou… dos Black Keys hoje roubam headliners que antigamente seriam de Robbie Williams ou Kylie Minogue.” Mesmo assim, obrigado pelo reparo! :)
Artic Monkey’s? A sério? Como é que alguém quer ser credível se nem o nome de uma banda (conhecida, goste-se ou não) sabe escrever? Arctic Monkeys!