Não é comum uma banda sobreviver ao atrito de trinta anos. Menos comum ainda é uma banda nos surpreender depois de tantos anos e discos. Com o novo e polémico Pelo Meu Relógio São Horas de Matar, os Mão Morta conseguem a dobradinha. E a receita continua a ser, afinal, surpreendentemente simples: misturar em partes iguais os seus traços identitários (a eterna “narração da decadência”) com a reinvenção permanente. Onde o disco anterior, Pesadelo em Peluche, era divertido, pop e sarcástico, Pelo Meu Relógio… é sério, indigesto e violentamente directo. E, já agora, um tremendo senhor disco.
O álbum é conceptual, narrando a desagregação social e psicológica – precipitada pela crise – de um homem solitário de classe média. Sentindo-se humilhado, sem uma réstia de amor-próprio que lhe sobre, o protagonista pensa no suicídio mas acaba por se reerguer de novo. Fá-lo, contudo, da forma mais demente: vingando-se dos decisores políticos, matando-os um a um.
A música que acompanha as palavras de Adolfo expressa numa outra linguagem a mesma perturbante narrativa. Daí a crueza do som: lento, agressivo, minimalista. Não é por acaso que a melodia da voz e os solos – bem como os sintetizadores, programações electrónicas e demais adornos modelados por António Rafael – sejam aqui reduzidos ao mínimo. Tudo é pensado ao milímetro para fazer o ouvinte sofrer, uma tareia emocional que nos faz acordar no dia seguinte ainda combalidos. Só assim a identificação com o orgulho ferido e a raiva cega do narrador será total. A sonoridade arrastada e agressiva do disco faz-nos lembrar os Swans, grande influência dos Mão Morta nos seus primeiros discos. Aqui e acolá, vem-nos também à cabeça a dolência harcore do My War dos Black Flag.
O vídeo do single “São Horas de Matar” tem dado que falar. Com imagens dos principais decisores políticos em pano de fundo, Adolfo vai matando sucessivamente várias figuras simbólicas do poder instituído: políticos, banqueiros, padres, juízes. Tanto à esquerda como à direita, depressa a polémica estalou nas redes sociais e na imprensa. Muitos acusam os Mão Morta de desrespeito pelas instituições democráticas e de incentivo à violência. É claro que a “má publicidade” que o vídeo lhes trouxe era justamente o que procuravam: como bons discípulos de Malcolm Mclaren, os Mão Morta sabem bem que “não existe má publicidade: há apenas publicidade ou falta de publicidade, nada mais.” É natural que a banda de Braga conheça como ninguém os mecanismos da máquina mediática. Afinal de contas, já fizeram vários discos sobre o tema. Não nos surpreendemos então que num hábil golpe de judo a banda do senhor Canibal tenha conseguido virar o monstro mediático contra o próprio establishment que o criou. Por entre as chamas do circo a arder, Adolfo e seus acólitos certamente sorriem com malícia…
Em contraste com o simplismo do vídeo (deliberadamente maniqueísta para que a polémica se pudesse alastrar), a narrativa que atravessa todo o disco é bem mais complexa. Canção a canção, vamos entrando no mundo-próprio perturbado do protagonista, compreendendo todos os passos da sua evolução psicológica até chegar àquela macabra situação limite. De tal maneira que no fim do disco nos soam naturais as palavras que noutro contexto decerto nos chocariam: “Ultrapassado o limite do ultraje, toda a violência é legítima auto-defesa. Também no meu relógio são horas de matar” (o “também” assinala aqui o roubo-homenagem de uma frase do poeta anarco-surrealista António José Forte).
Ao longo de todo o álbum, o nome do protagonista nunca é pronunciado, uma artimanha urdida pelo ardiloso Adolfo para reforçar o nosso sentimento de identificação. Desconhecendo até ao fim o seu nome, uma perturbadora hipótese assoma-nos o espírito: e se formos nós, afinal, o insano protagonista? E se, expostos nós à mesma conjunção de adversas circunstâncias, não encontrássemos também outra solução que não a de matar e matar e matar? É impossível não nos lembrarmos agora das palavras proferidas por Adolfo no clássico “Berlim”: “que faço eu aqui com as mãos manchadas de sangue?”
Por outro lado, o espírito da nossa época de declínio civilizacional é descrito com igual minúcia. E, no meio dos escombros, uma frase-chave brilha mais nítida: “Sem qualquer sonho que aponte um caminho”, ouvimos Adolfo murmurar em “Mulher Clitóris Morango”. Tudo se ilumina então por fim. Percebemos então, com uma clareza agora ofuscante, o tema do disco: uma reflexão sobre o lugar da resistência num mundo pós-ideológico. A conclusão é, no entanto, pessimista. Se as ideologias morreram, e não mais acreditamos nas antigas formas de participação colectiva, só nos restam duas alternativas: ou permanecemos anestesiados na condição de espectadores, pois até a nossa própria miséria é habilmente reconvertida em espectáculo e mercadoria (cenário explorado nos discos Há Já Muito Tempo que Nesta Latrina o Ar Se Tornou Irrespirável e Pesadelo em Peluche), ou se queremos ser actores do nosso próprio destino e resistir, não conheceremos outra forma senão a da violência cega e individualista. Por outras palavras: é uma questão de tempo até o primeiro cocktail molotov ser lançado…
Não é a primeira vez que os Mão Morta são abertamente políticos. Já no seu terceiro disco – o icónico O.D., Rainha do Rock & Crawl – clássicos como “Anarquista Duval” e “Charles Manson” apelavam a um imaginário político violento e impiedoso. No novo disco, porém, a banda de Braga leva este imaginário até às suas últimas consequências. A conclusão parece-me então inevitável. Na já citada canção, Adolfo exclamava: “quando o Charles Manson sair da prisão é que vai ser…”. Que não haja dúvidas: com este novo álbum-murro no estômago Charles Manson saiu por fim.