Não é fácil gostar de Björk de forma apaixonada. A pequena islandesa nunca facilitou a vida a nenhum ouvinte, e esse é um aspeto a ter em conta na valorização do seu trabalho. Sempre foi assim desde Debut (1993), primeiro verdadeiro álbum a solo de uma carreira que já havia começado alguns anos antes com Björk (1977) e Glin-Gló (1990), e depois em formato de banda com os empolgantes The Sugarcubes, isto se não quisermos ir ainda mais atrás no tempo. Desde o álbum que nos deu, por exemplo, «Venus As a Boy» que Björk foi trilhando o seu particular caminho, afastando-se cada vez mais do travo pop que existia nos primeiros discos da artista. A experimentação sonora foi tomando o lugar primordial da existência artística de Björk, o que nem sempre agradou aos ouvintes que estavam do seu lado desde os tempos de Debut, Post (1995) e Homogenic (1997). Curiosamente, é com o disco de 2001, o maravilhoso Vespertine, que Björk começa a ser mais ousada e a percorrer caminhos mais sinuosos, e que nem sempre terão sido totalmente bem conseguidos. Agora, neste início de 2015, e por circunstâncias que ultrapassaram a vontade da artista, o seu mais recente trabalho já é conhecido, antecipando-se assim o que deveríamos apenas conhecer em março próximo, data em que a cantora perfará 50 anos de idade. Chama-se Vulnicura e representa, acima de tudo, uma passo rumo à essência mostrada em Vespertine, longe de algum espalhafato conceptual que marcou os seus últimos trabalhos. Para nós, isso é um generoso ganho, algo que nos agrada e nos faz aproximar de Björk de forma mais quente e humana. Há boas razões para que isso aconteça, ao que parece. E bem fortes, uma vez que em algumas das entrevistas de lançamento dadas pela irrequieta islandesa, tem havido muita comoção e choro.
Vulnicura, que quer dizer «cura para feridas», é um disco cru, muito pessoal, feito tendo em conta as relações humanas, que naturalmente evoluem, alteram-se, e chegam ao fim. Por isso, um forte sentimento de perda e desolação percorre todo o álbum, conferindo-lhe uma doçura particular, um sentimentalismo dramático de grande beleza. Os arranjos das cordas e das eletrónicas são de enorme elegância, comoventes até. «Stone Milket», a faixa de abertura, é apenas um primeiro e eloquente exemplo do que digo. Todas as outras 8 composições de Vulnicura caminham na direção dessa imaculada beleza e leveza. Tudo se espalha delicadamente no ar, tudo se articula para se encaixar aninhadamente nos nossos ouvidos. «History Of Touches», a mais curta composição do álbum, é reveladora do cerne deste disco, estilhaços da alma da cantora. Ao lermos os versos da canção, tudo se torna claro: «I wake you up in the night feeling / This is our last time together». As memórias podem ser muros difíceis de evitar! Até pelos títulos do álbum e desta canção em particular se percebe que este é um disco mais físico, mais sofrido, mais à flor da pele: «Therefore sensing all the moments / We’ve been together, being shared at the same time / Every single touch / We ever touch each other / Every single fuck we had together…». Será preciso dizer mais alguma coisa?
Há quase 15 anos que Björk não nos brindava com um disco tão mágico e tão poético ao mesmo tempo. Só as últimas duas canções de Vulnicura são vestidas de elementos eletrónicos um pouco mais extravagantes, embora vergados, mesmo assim, à disciplina de recolhimento, transversal a todo o disco. Na penúltima, intitulada «Atom Dance», a participação especial de Antony aparece, sem que daí, diga-se em abono da verdade, venha algum benefício que não o de ser uma voz masculina, e por isso contrastante com a da islandesa. Para trás ficaram, por exemplo, as portentosas «Black Lake» e «Family», canções também bastante tocantes e expressivas.
É preciso tempo para se ouvir Vulnicura. Tempo, e condições. Tem de ser ouvido sem interrupções, sem distrações que nos impeçam a sua melhor digestão. Tem de ser ouvido uma e outra e outra vez ainda. É um disco exigente, como se vê pelo que aqui vai dito. Quando isso acontece, quando percebemos que não é fácil gostar-se de Björk apaixonadamente (como referi no início deste texto), embora seja quase sempre bastante recompensador, então percebemos que vale muito a pena ouvir o trabalho de uma artista deste calibre. O regresso de Björk não podia ter sido melhor, por muito que isso lhe tivesse custado feridas que podem muito bem não ter cura nos próximos tempos. Talvez com Vulnicura consigamos curar as nossas.