Toda a gente conhece o Bernardo Barata baixista, o groove de Diabo na Cruz, Oioai, Real Combo Lisbonense e Feromona. O que pouca gente sabe é que por detrás deste discreto sideman existe um original autor de melodias, urdindo na penumbra – qual Marcelo Rebelo de Sousa da pop – as grandes canções que agora nos mostra.
Desengane-se quem lhes venha à cabeça temas com três acordes e orelhas demasiado grandes. É outro o trilho que Bernardo percorre, com aquelas harmonias complexas e invulgares de quem já enfiou muito vinil do Sérgio Godinho e do José Mário Branco no bucho.
Talvez por timidez de iniciado, a maior parte das letras não são suas, mas o apurado gosto dos seus convivas apenas engrandece o disco. Metade delas foi escrita por Joana Barra Vaz, escriba tão sofisticada que nunca sabemos muito bem onde acaba a letra pop e começa a poesia; a outra metade foi gentilmente roubada a poetas consagrados como Boris Vian, Sophia de Mello Breyner, Oioai e Os Pontos Negros. Aliás, se há adjectivo que define como nenhum outro Turista! é justamente “literário”, tal é o amor com que Bernardo trata cada uma das mil quinhentas e sessenta e sete palavras que canta (mais do que as que há na discografia completa dos Ramones), todas escolhidas com o carinho e o rigor de quem sentiu antes na mão o peso exacto de cada uma.
A letra é sempre o seu ponto de partida, o novelo de lã emaranhado onde tudo começa. Depois, Bernardo vai desenrolando, com paciência e desenvoltura, o fio de melodia que encontra latente nas palavras-mãe. Em seguida, encontra-lhes uma atmosfera, o tom emocional que a canção respira. Em “Já Não Dá”, para dar apenas um exemplo, Bernardo descobre desespero, e através do seu soberbo arranjo, cheio de pesados e dolorosos silêncios, dá uma dimensão épica, quase apocalíptica, à canção. Não é segredo para ninguém que a poesia e a música são artes irmãs mas poucos são os que como Bernardo Barata levam tão longe este incestuoso matrimónio.
Sendo tão diversas as fontes literárias de que faz serventia, seria de esperar alguma dispersão de conjunto. Ora, não é isso que acontece, existindo uma surpreendente unidade – de tom e de conteúdo – em todo o disco. São os temas da alienação, da incomunicabilidade, da angústia, do desejo de evasão, que espreitam a cada canto, num registo desencantado que apenas admite fugaz escape na ilusão da arte e do amor. Que um disco tão denso e amargo se chame Turista! é uma das suas mais deliciosas ironias.
Tom Waits disse um dia que o mundo é um lugar infernal e que a má escrita está a destruir a qualidade do nosso sofrimento. Felizmente para nós que Turista! apenas nos serve para o jantar angústia filet mignon, de tão bem escrita e musicada que está. Já que não podemos ser felizes, saibamos ao menos saborear a nossa tragédia com todo o requinte que ela nos merece, diz-nos a cada instante o inesperado disco de estreia de Bernardo Barata. Venham mais cinco iguais a este.
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