Não haverá presunção alguma em reclamar-se preconizações desta eventual colaboração. Talvez incluindo não Ghostface Killah, possivelmente outra gorda personagem de ombros largos do hip-hop de velha guarnição, lá dos primórdios, dos que se multiplicam em features por meio da reputação e do peso do nome, eventualmente também segundo a delinquência prestada à convenção do tempos áureos deles; porém, cá a temos, cá a esperávamos, porquanto tão eventual era essa possibilidade quanto plausível é o entrosamento da sonoridade de BadBadNotGood (BBNG) com a ambiência genérica da velha guarnição do hip-hop. Inclusivamente, meia dúzia de colaborações nos entretantos com Tyler, the Creator ou colegas de linhagem concretizam e justificam a expectativa que reivindico, embora não sejam a sua causa. Pois bem, BBNG são intrinsecamente hip-hoppers: a atmosfera jazzy e os subterfúgios dos sopros de Leland Whitty mascaram e camuflam a intenção da banda, em púlpito palpitando no núcleo das suas composições, guardando em efervescência a agressividade de Public Enemy, o groove de Biggie, em casos fortuitos a elegia religiosa de 2Pac — alguém me corrija, se errado estiver. É precisamente a emancipação recorrente de riffs substanciais e de baixos hipnóticos que intermedeia a improvisação jazz segundo os padrões de Miles Davis (admita-se), uma vez que a intenção da espontaneidade se evidencia e constringe, se solta e se lhe são tomadas de novo as rédeas. Há equilíbrio, e o equilíbrio é ambíguo, mas invariável e prepotentemente pende para o pulular hip-hopper, em detrimento da frugalidade jazzy.
Assim, não é colaboração oca. Ghostface Killah é complementar de BBNG, e encaixam, encaixe esse que pariu Sour Soul. O próprio título do álbum ilustra o confronto directo entre o jazz de superfície assinado pela banda e o núcleo do old-school da Costa Este idiossincrático de Wu-Tang Clan: a amargura e tensão do gueto com a melopeia espiritual dum Ornette Coleman em speeds. Vinha já essa complementaridade sendo desenhada na rítmica trap de “Can’t Leave the Night”, em III, seguindo a espiral descendente do caos dos primeiros álbuns, acompanhando a agravamento caleidoscópio daquilo que é, hoje, tanto no transacto trabalho de BBNG como em Sour Soul, elegância e ordem; acompanhando a lírica (enfim, não esquecer que se trata do primeiro récord com mais do que meia dúzia de palavras mastigadas) austera e acusadora de 36 Chambers.
Vai-se ouvindo, essa dicotomia. D’Angelo tem delicadezas que se vêm descobrindo em “Stark’s Reality”. Na verdade, incorpora-se em curta medida a soul daquele, na medida certa para que se tempere, se apazigue aqueloutra dicotomia. O resultado é ambiência amena, prazenteira — assim, por intuição, chega-me o adjectivo soothing —, suficientemente neutra para que a primazia seja de Ghostface, interlocutor intenso, brusco. Qual não é a surpresa quando, desarmado, o ouvinte se dá ao deleite inicial de “Tone’s Rap”, defronte depois, num baque, do inesperado “AYO, BITCH”? Pois bem, inflexões semelhantes, de carácter idêntico nos álbuns transactos de BBNG (de maneira particular em permutas de ritmo e jogos de silêncio), dinamizam as faixas, conferem-lhes tensão, electrizam-nas. No geral, potencialmente seriam de contemplação descomprometida, álbum anestésico; porém, são espaços de intervenção, são possíveis jam sessions, uma vez que a aparente economia sonora transversal a Sour Soul — um não-minimalismo embora não-maximalismo — se recheia de pormenor. É tão espontâneo quanto pode ser, e é tão calculista nas suas possibilidades quanto pode ser. Não há obsessão de tudo estar no seu sítio, e no entanto há sentido de asseio. O low-profiling foi uma prioridade para a colaboração, e ao mesmo tempo laivos groovy, chill têm direito a um plano muito próximo do belicismo paternalista de Killah.
Sour Soul é exactamente o que se esperava que fosse. Não vem daí prejuízo, não vem daí acusação à criatividade: pelo contrário, o álbum estabelece, consciente de si, a ideia platónica daquilo que seria uma colaboração nos meandros do hip-hop e do jazz. Sour Soul é o que se imagina que seria, e parte maior do mérito da colaboração é a concretização dessa ideia. A criatividade de “Six Degrees” é ser o que é, é o agrado de a expectativa ser a realidade, sendo a expectativa o que se queria que fosse a realidade; a criatividade de “Ray Gun” e “Nuggets of Wisdom” — em particular a segunda parte, de fluidez inegável — é epitomizar a sonoridade e o conceito; a criatividade de Sour Soul é padronizar e consagrar Sour Soul. Depende de um preconceito a determinado grau, decerto (e os meus ritmos do pós-punk terão tido influência bastante no entrelaçar com os [meus] ritmos de Coltrane); contudo, é um álbum necessário. Não é groundbreaking, não há génio; contudo, ajunta e fortifica uma ideia. É sólido. É discreto. É paciente, é suave, é indulgente.
“My vocab is powerful, spit shit subliminal / Slang therapist, my whole style is criminal” contrariaria essa ideia, decerto. Em reminiscências de Nas, ocasião esta de “It Ain’t Hard to Tell”, em particular de “I kick a skill like Shaquille holds a pill / Vocabulary spills I’m Ill plus Matic”, é rico Sour Soul, assim como em ocasiões outras basilarmente chegadas ao individualismo empowering, chegado a um altruísmo excêntrico, do autor de Illmatic. Ghostface (e reparo em Danny Brown e sua incorporação flashing no esqueleto de “Six Degrees”) retrata os seus contemporâneos, aqueles, lá do início, os da velha guarnição; porém, incorpora-os, apazigua-os. Há algo largamente cinematográfico nesse contraste, nessa fusão que acabei de evidenciar. À semelhança do que reparei há parágrafos, denota-se contenção no improviso jazz, contenção essa que se dispõe na toada do que carrega a herança de Wu-Tang.
“Food” abraça e hibridiza esta ideia em coisa de três minutos e meio: soothingness, dizia eu mais acima, está no núcleo da produção. Em última instância, é um álbum terapêutico. Ameno. A ansiedade queda-se por aí, algures: nota-se-lhe a proximidade, e eventualmente seria perceptível na voz de Killah ou numa ou noutra extravagância de BBNG; porém, não se apalpa. “Experience” catalisa meia hora de confronto saudável em serenidade. A imagem com que Sour Soul se despede é saudosa, se me é permitido. O trabalho está feito, o sorriso sensaborão rasgou-se-me no rosto. Não é um bom trabalho, como o de Whiplash, contudo. Não é tão-só competência desinteressada. Prometia, criava expectativa, cumpre. O álbum é um statement, e raras vezes um statement foi tão prazenteiro.