Ir além do preconceito mantendo-se fiel às origens: é esta a receita de um Benito mais adulto e consciente da vida, do amor e do mundo que o rodeia. Tudo isso enquanto nos põe a abanar as ancas.
Lembram-se da música “Gasolina”, hino dos anos 2000 criado pelo igualmente famoso Daddy Yankee? Na pesquisa para este texto descobri que em 2023 foi oficialmente adicionada aos arquivos da Biblioteca do Congresso dos EUA – ao lado de referências como “Bitches Brew” (Miles Davis), “The Kӧln Concert” (Keith Jarrett) ou “Imagine” (John Lennon), por exemplo – pela sua importância “cultural, histórica e estética”. Afinal isto do reggaeton tem mais que se lhe diga.
O lançamento bombástico de DeBÍ TiRAR MáS FOToS, o oitavo disco de originais do portoriquenho Benito Antonio Martinez Ocasio, mais conhecido como “Bad Bunny”, veio que meio reacender o debate que já dura alguns anos sobre a maneira como a “nova” música latina se tem fundido com um universo sónico mais alternativo. De um lado há quem o desacredite enquanto pop de pacote, barulhos ocos que só por fazerem discotecas baloiçar vão ganhando destaque. Por outro, há quem o veja como o apogeu da inclusão e diversidade, produto refinado que surge a rasgar o domínio anglo-saxónico deste universo cheio de história, sumo e significado. Pessoalmente, não acho que seja nem uma coisa, nem outra: é um pouco das duas coisas e este grande disco é a prova disso mesmo.
Enquanto género musical, o reggaeton surge no Panamá, altamente influenciado pelo universo do reggae que foi introduzido nesta região pelos imigrantes jamaicanos que ajudaram a construir o famoso Canal e cuja impressão digital nunca desapareceu. Juntamente com o dancehall, também ele extremamente relevante no ADN do reggaeton, estes dois estilos foram-se enraizando até serem influenciados pelos os avanços tecnológicos que surgiram nos anos 80, com a introdução de sintetizadores e drum machines, principalmente. Foi assim que nasceu um padrão de drum chamado dembow, a base de muitas músicas de dancehall moderno e parte essencial do universo rítmico/melódico do reggaeton, que por esta altura já tinha dado o salto até Porto Rico – terra natal de Bad Bunny. Este “estado” norte-americano, à conta do histórico fluxo de emigração para os EUA, já tinha uma forte influência do mundo do hip-hop e foi assim que este género foi também adicionado ao caldeirão.
Esta fusão de reggae, dancehall e hip-hop acabou por ser batizada como reggaeton – hoje também chamado de perreo – e tornou-se rapidamente na bandeira de uma geração de jovens que priorizavam a festa, o amor, a paixão, o álcool, a droga ou o sexo, quase como um rock n’roll com salero e celebrado por gente com mais jeito para dançar. Em Porto Rico, por causa da linguagem obscena que muitas vezes se usava nessa música, durante décadas ela teve de viver numa semi-clandestinidade por causa da censura imposta em meados dos 90 ‘s. Foi crescendo à boleia de remixes amadores, festas e muitas, muitas cassetes bootleg vendidas nas ruas de San Juan e arredores. Só em 2000, com a tal canção de que falo há uns parágrafos, é que deu-se a explosão e Daddy Yankee catapultou o género para o mainstream. Com uma origem rica e diversa, esta música conta, à sua maneira, a história de um período de tempo vivido na América Latina onde fenómenos como a imigração e uma certa repressão levaram à criação de uma contracultura, já que este género acaba por ser uma contra-ponto aos estilos mais clássicos e “bonitinhos” que dominavam na altura, como a salsa, o merengue ou a bomba (género porto riquenho). Tudo isto mostra que há muito sumo neste movimento. Mas a verdade é que a sua ascensão meteórica, como acontece sempre, fez com que o género acabasse por se tornar bastante comercial. Daí ser preciso um tal equilíbrio entre corpo e cabeça, algo que Benito conquistou com este disco.
Enquanto um dos inúmeros filhos de Yankee, Bad Bunny tornou-se talvez naquele que hoje mais alto levanta a bandeira deste estilo de música e que, com base neste DeBÍ TiRAR MáS FOToS, mais faz justiça às suas raízes crioulas. Olhando para o seu trajecto é notório perceber que um reggaeton mais comercial pautou o início de carreira, maré que começou a mudar com o igualmente estrondoso Un Verano Sin Ti (2023), onde surgia uma maior ligação à história da música latina, por exemplo, com faixas como “Después de la Playa” com o seu intoxicante mambo e merengue; ou mesmo com “El Apagón”, onde ouvimos samples de bomba entrecortados com house. Este novo disco é uma depuração de tudo isso.
Começa-se em grande com “NUEVAYoL” (uma brincadeira com a maneira como os latinos dizem o nome desta cidade norte-americana, epicentro da migração porto riquenha nos EUA), um autêntico banger que sampla a canção “Un Verano en Nueva York”, de Andy Montanez & El Gran Combo de Puerto Rico, e é uma salsa dengosa que se cruza com a sonoridade digital de um reggaeton mais contemporâneo (com laivos de produção de hip-hop e trap). Segue-se para “VOY A LLeVARTE PA PR”, a primeira incursão mais purista ao universo reggaeton numa canção de fazer agitar ancas enquanto ouvimos uma narrativa lasciva sobre como uma simples viagem a Porto Rico é capaz de fazer alguém “apagar o Tinder”. “BAILE INoLVIDABLE” é outro portento, uma salsa pura e emotiva que fala de um amor perdido e o bom que foi pelo menos tê-lo tido, já que foi ele que ensinou a amar e a “bailar”. Esta canção é um dos pontos altos do disco e curiosamente de reggaeton tem muito pouco ou quase nada: no seu lugar há o contagiante das sonoridades latinas, uma temática contemplativa e emocional sobre o amor e a vida (e não sobre engates na pista de dança) que não é nenhum poema de Keats mas traz alguma profundidade que normalmente não surge neste estilo.
Por esta altura já conseguimos perceber que este não é um disco de reggaeton, apesar de ter várias músicas deste estilo – fora a já mencionada, temos ainda “PERFuMITO NUEVO”, “VeLDÁ”, “KETU TeCRÉ”, “KLOuFRENS”, “EoO”, as mais puristas para partir a pista. À semelhança do que acontecia na sua origem, o género vai puxar para si outras influências como de electrónica contemporânea em “El ClúB” ou “WELTiTA”, por exemplo, mas em grande medida a géneros clássicos do caribe e América Latina como a salsa, o mambo e muitos outros. Em algumas canções essa presença é subtil, como na belíssima “TURiSTA”, que nos fala de relacionamentos onde o amor pesa mais num lado que no outro, “LO QUE PASÓ A HAWAii” é outro exemplo e também uma interessante estreia onde Benito assume uma postura política (quer queira quer não), ao falar da maneira como um certo turismo desenfreado coloca em risco a identidade e território do “seu” Porto Rico.
Depois há as canções onde quase só se ouve “latinidade” pura e dura como “PIToRRO DE COCO”, “CAFé CON RON” ou “LA MuDANZA”, esta última com uma intro onde Bad Bunny conta a história da sua família e de como um acaso juntou os seus país, partindo depois para uma “egotrip” muito própria de géneros contemporâneos como o hip-hop ou o… reggaeton (“Lugia, Ho-Oh, cabrón, yo soy legendario”, belíssima referência para quem gosta de Pokémons). Nota ainda para a emotivo “DtMF”, sigla do nome do álbum, onde se fala do arrependimento de não valorizar melhor o que temos porque um dia termina. O seu sucesso global fala por si.
Concluindo, este DeBÍ TiRAR MáS FOToS é o melhor disco de Bad Bunny e mostra-nos que o reggaeton pode ser mais do que apenas versões plásticas e vulgares que aportam pouco a quem as ouve tirando fazê-las dançar. A sua história mostra o quão permeável é este estilo e Benito, com DeBÍ TiRAR MáS FOToS, mostra que é um género em mudança e que tem potencial para ser mais do que música mexida (apesar de nunca poder perder totalmente esta vertente). A fase em que o músico nos mostra estar revela uma maior maturidade, uma crescente capacidade de ir além dos rabos a abanar (nada de mal com isso, atenção). Não só há uma reflexão sobre a vida, o caminho que percorreu até aqui chegar e a necessidade que surge de regressar à origem para reconectar-se à sua identidade enquanto filho de “Tito” e “Lysi”, por um lado, mas também ao legado que carrega enquanto latino que convive num universo predominantemente norte-americano – e todos sabemos como estão os EUA nestes últimos tempo -, onde a validade da sua história e cultura é constantemente deturpada ou colocada em causa. Tudo isto enquanto nos faz dançar, seja com a mão no ar ou na anca de alguém.