Três anos depois de Spirit They’re Gone, Spirit They’ve Vanished (2000) os Animal Collective já eram outra banda. A Avey Tare e Panda Bear tinha-se juntado Geologist (Brian Weitz). Com ele, os dois rapazes gravaram dois discos, ambos ainda sem o nome Animal Collective, apenas os seus nomes artísticos: Danse Manatee (2001), uma esquizofrénica aventura electrónica de fritar neurónios, e Hollindagain (2002), uma colecção de gravações ao vivo onde manifestavam uma liberdade ainda mais experimental que no passado.
Em Campfire Songs, o trio de Baltimore, Mariland, voltava-se para a simplicidade. Ah, e tornava-se quarteto. Entrava Deakin (Josh Dibb) e os quatro amigos pegavam simplesmente em guitarras acústicas e cordas vocais. Com os dois instrumentos e um conjunto de microfones colocados de forma a capturar um som maior, onde se sentisse o ar livre e a ambiência de uma reunião na floresta, o grupo juntou-se à volta de uma fogueira e gravou aquele que seria o seu quarto disco, de uma só tirada – com algum som de ambiente a ser acrescentado posteriormente.
Com os troncos em volta de uma pinha e uns pedaços de tudo, ateia-se o fogo e aquilo a que me atrevo a chamar de folk ambiental começa a acontecer. Os meninos, à volta da fogueira, começam a ensinar-nos coisas de sonho e de verdade. A frase de Ruy Mingas, popularizada por Paulo de Carvalho e aqui alterada, não poderia fazer mais sentido – em cada labareda, ouve-se uma memória; em cada faísca, vem-nos um sonho.
“Queen In My Pictures” é a primeira de cinco canções. É o primeiro papagaio que deitamos no vento, às corridas pela praia. O primeiro golo que entra na baliza da escola, contra todas as possibilidades. O primeiro animal de estimação: o periquito a cantar, o hamster a correr, o peixe a nadar. Achamo-los felizes, connosco petizes. A colega do infantário na casinha de madeira, o pai dela que não deixou que namorássemos. O primeiro dia de escola, sempre agridoce. Chegar a casa e lanchar a ver os bonecos na televisão porque nada mais importa. O primeiro dente que cai sem dor e rirmo-nos da desdentadura. Aqueles jantares de família na terra dos avós, os primos e as tropelias. Mas há um si menor em “Doggy” que muda tudo. Um si menor que treme e ondula e nos puxa as orelhas. É o ralhete da educadora, a palmada dos papás, a ida ao dentista que doeu. Porque é que nos infligem dor? Porque é que os avós têm de morrer? Porque desaparecem os nossos queridos animais, os únicos que não nos maltratam? Porque é que há pessoas antipáticas e más para nós, quando somos apenas crianças? Temos de perdoar aquela vez. E todas as outras. Temos de perdoar. “Two Corvettes” traz-nos a primeira namorada, a rajada de vento e guitarras que nos leva o (n)amor(o), e faz-nos imaginar como será a última. Sonhamos com ela. “Moo Rah Rah Rain” e “De Soto De Son” são dois enigmas surrealistas que deixo para cada um decifrar, como não podia deixar de ser num disco dos Animal Collective.
E Campfire Songs é a fogueira que nos traz a memória, envolta em chamas de vida. A memória de todas as primeiras vezes. De todas as alegrias, de todas as dores, de todas as feridas no joelho. É a fogueira que nos faz a memória. Memória que procuramos em busca da pureza, o antes do antes, a estaca zero, quando tudo era pela primeira vez. A inocência da primeira das fogueiras, os primeiros pedaços de madeira que fizemos arder. Respiramos a cinza, vamo-nos tornando nela. Madeira, fogo, cinza. Mas a fogueira faz-nos fénix e traz-nos de volta. De volta para sonhar com um mundo melhor, de volta para fazermos bem o que antes fizemos mal. De volta pra viver, de volta pra morrer e viver mais outra vez. Até morrer.