Luís Nunes, cantor, compositor, artista e esteta pleno, acaba de lançar o seu álbum mais arrojado. As Berlengas, uma ode triunfal com 20 músicas que nos apanha desprevenidos e nos entrelaça o cérebro, põe-nos a raciocinar e ao mesmo tempo a divagar. Uma peça complexa e distintiva, que requer tempo e dedicação na escuta. Fomos recebidos na casa/atelier de Benjamim para uma conversa sobre a concepção desta obra imaculada.
Altamont: A primeira pergunta que eu quero fazer é quando é que decidiste fazer um disco assim? Ou seja, quando começaste já tinhas uma intenção clara ou a coisa foi saindo?
Benjamim: Acho que quando começas, nunca tens uma intenção muito clara, porque a música não funciona assim, ou seja, eu decido «vou fazer um disco» mas a declaração só pode vir depois de haver alguma coisa, de existir algum material que tu penses «ok isto pode dar algo, pode dar azo a fazer um disco, ou este caminho é um conceito novo que eu quero explorar para ser um disco». Foi um bocado o que aconteceu. Comecei há 6 anos, portanto, eu estava ainda a acabar o 1986, já tinha gravado o disco e ia misturar e estava muito, muito farto de fazer canções. Estava farto da cena de andar sempre à volta das letras e da eficácia da canção e de refrão/verso/bridge – também estava a produzir muitas coisas, não era só com a minha própria música, mas era com tudo o que tudo o que estava a fazer – e comecei na minha MPC [music production center]. Isto começou quase como um disco de hip hop, na verdade, com samples de coisas que eu agarrava e samplei o meu amigo AP Braga, no disco tenho assim umas referências, samplei-me a mim próprio, samplei discos que eu produzi e é um bocado o processo de um disco de hip hop, todo na MPC de repente ia a partir dos samples… comecei com essa espécie de exercícios de escape, que era o que era, levava a MPC e uns phones e um tecladozinho e sempre que ia para um sítio qualquer, levava aquilo e isolava-me no meu mundo e escapava para esta música, e é a partir do momento em que começaram a aparecer algumas ideias assim um bocado mais electrónicas, eu comecei a interessar-me muito pela ideia de fazer um disco longo – o disco tinha para aí 26 músicas na versão original, ficou muita coisa de fora. E pronto, foi nascendo o conceito, foi nascendo disco, o conceito das Berlengas nasceu logo quase desde o início, que as Berlengas era uma ideia que era um bocadinho uma coisa… era um escape, uma espécie de uma piada, uma private joke para mim próprio, e depois o conceito foi ganhando muita forma, foram aparecendo canções, depois punha de lado, não ouvia durante montes de tempo e ia fazer outro disco, outra coisa qualquer e coisa ficava ali meia parada, portanto, obviamente não foram seis anos sempre a trabalhar no disco.
Então depois de começares, pelo meio, ainda fizeste o Vias de Extinção.
Sim.
Que não é muito distante deste disco.
Não. Aliás, na capa, se tu reparares, o Benjamim aparece quase da mesma maneira que aparece no Vias de Extinção e é um bocado… apesar de eu achar que são discos muito diferentes – e vêm de sítios muito diferentes, e têm uma história muito diferente, é um argumento completamente diferente – isto é uma coisa que tem uma história. No Vias de Extinção estou a cantar eu, e aqui não estou sempre “eu” a cantar, sou sempre eu mas são personagens que cantam em muitos casos. Eu tento processar bastante a voz, que é para quase parecer outra pessoa a cantar. Mas sim, este disco enformou o Vias de Extinção de uma forma muito profunda.
Pois. Há coisas deste disco que eu consigo identificar como pedaços de toda a tua discografia. Quiseste desconstruir-te um bocado?
Sim, é auto-referencial e há um lado, desde o início deste disco, que é um disco de produtor. É um bocado estar-me a cagar para quanto tempo tem uma música, quantos teclados é que eu lá ponho dentro. É um bocado maximizar, falta-me agora a palavra, mas é um disco de produtor e tem um lado auto-referencial. O facto de eu me samplar a mim mesmo, o facto de eu samplar discos que eu produzi, o facto de eu ir buscar sons de cenas que eu já fiz, ao mesmo tempo que eu tento criar uma coisa nova, sim há um lado da auto-referência. E e samplar é isso, não é? É tu ires buscar o som de outra coisa, ou de te samplares a ti próprio e re-contextualizares o som, re-contextualizar a música.
Falas aí de ser um disco do produtor, de samplar, e eu senti aqui ecos de The Go! Team e Flaming Lips, muito cheio mas muito melódico, também alguns traços de Air no Moon Safari, e na parte do produtor lembra-me um bocado as coisas iniciais de Metronomy. Ou seja, fico com a sensação que isto partiu de um exercício de prazer pessoal. Dizes que estavas farto da estrutura das canções, mas o disco está repleto de óptimas canções.
Sim, e tu estás a citar referências, o disco tem referências. A tal cena do produtor é exactamente a colagem, ir buscar… estavas a dizer Flaming Lips, é uma grande referência para mim, portanto, acho normal que esteja presente. Ou seja, não há um fio condutor estético ao longo do disco, há mas é muito fundacional, não é um disco em que estás a ouvir a banda do início ao fim. No Vias de Extinção, os sons mudam mas, apesar de tudo, é um baixo, bateria, uns sintetizadores, um gajo a cantar, uns coros e tens isso do início ao fim do disco, existe um fio condutor estético, musical, que aqui não há, aqui tu passas de uma canção para um momento esgrouviado de sampling e caixas de ritmos e sintetizadores. A música música #18, que é o “Rochedo (Ilhéu Maldito)”, eu pus para chatear. Chama-se “Rochedo”, que é tipo estás quase a chegar ao fim do disco, ainda vais levar com esta malha que são uns sintetizadores em random, começam a sobrepor-se uns aos outros. Eu comecei a fazer aquilo e pensei «as pessoas vão detestar isto», e a ideia de também provocares o ouvinte, isso sempre me interessou. Eu nunca senti que estivesse sozinho no disco, estive sozinho todo o processo de fazer o disco, praticamente sozinho, mas havia sempre a intenção de pensar «como é que eu quero que as pessoas ouçam isto? Quem se der ao trabalho de ouvir este disco, como é que essa pessoa vai apreender, vai receber isto?» Depois também há um lado que eu acho que é muito importante, este disco tem muitas dimensões, passou muito tempo e, portanto, foi muitas coisas, há muitas coisas. Tu vais desenvolvendo o conceito e num conceito destes que é muito aberto, a coisa vai se transformando muito, mas muito cedo para mim começou a ser claro que havia um lado cinematográfico no disco.

É aí que entra o Bruno Ferreira, realizador, que transformou a tua música em filme?
Eu nunca fiz uma banda sonora para um filme, pensei «vou fazer uma banda sonora para um filme que não existe» e comecei a criar a narrativa. Tem tudo um fio condutor, “As Berlengas (parte 1)” é chegada à ilha, o “Scally” é uma espécie de desembarque na ilha, “Atrás da Barricada” é quando chegas à ilha e percebes que o mundo está todo dividido, tal como no mundo real, porque a ilha é só uma metáfora. Eu nunca tinha ido às Berlengas quando comecei a fazer o disco, mas depois há um lado muito interessante que foi, quando eu falei com o Bruno Ferreira com a ideia de talvez podermos fazer um filme a partir do disco, eu estive muito aberto. Quando fomos à ilha, eu comecei a gravar sons, na primeira vez. Depois falámos com o João Reis Moreira porque eu sempre imaginei pessoas a dançar e o Bruno disse logo «epá, o filme pode ser uma espécie de um bailado» e eu adorei essa ideia. E eu fiz um guião do que é que era o disco, o que é que para mim era o encadeamento das canções, o que é que cada canção significava, e trabalhar com coreógrafo que depois reinterpreta as minhas ideias – que muitas vezes não eram muito concretas ou às vezes era só um conceito – ele reinterpretar a coisa e traduzir isso para dança e de repente, ele traduz e dá novas imagens sobre aquilo que tu próprio estás a fazer, isso foi para dentro do disco também. E eu, de propósito, quando nós fomos gravar o filme à Berlenga, o disco não estava acabado e houve muitas coisas que eu fui mudando e muitas notas que eu fui tomando à medida que estávamos a filmar e que influenciaram e que mudaram coisas no disco, houve sons e coisas que apareceram, que eu só fechei mesmo quando tinha imagens. Do género «ok, nesta música, isto é a imagem que está a acontecer», já não era só uma coisa na minha cabeça, de repente era uma coisa concreta, completamente diferente daquilo que eu tinha imaginado, podia ser vago, percebes, mas esse processo também foi interessante. Apesar de ter feito o disco sozinho, as canções e ter gravado tudo sozinho, eu estive aberto a que outras pessoas, que não são músicos, pudessem influenciar a música.
E isto é uma história, uma viagem às Berlengas reais ou metafóricas?
Metafóricas. Quer dizer, é real, é quase ficção científica. Ninguém viu o filme ainda, nem eu próprio porque não está acabado, mas no primeiro vídeo que nós lançámos que é “As Berlengas (parte 1)”, tu vês uma personagem a nadar até à até à ilha, só que ele vem do mar não vem de terra, normalmente quando vais à Berlenga sais de Peniche, apanhas o barco, só que ele não, de propósito, a minha cena era sempre… a ideia de rochedos e de ilhas e de ele ele andar pelo meio dos rochedos até chegar à ilha que está habitada, esta viagem… Eu nunca tinha ido à Berlenga, via imagens no Google, olhava para aquilo e ficava «Uau, esta água», parecia que era uma ilha perdida noutro continente quase, mas não, isto é na Costa de Peniche. Eu não queria uma metáfora colonialista na Berlenga, queria uma ilha como um espaço mental, como uma fuga, que o disco foi uma fuga para mim em montes de situações que aconteceram, e de leituras políticas, sociais, que eu que eu fui fazendo ao longo deste tempo, e era uma espécie de uma fuga onde eu punha essas preocupações. Mas a história é uma pessoa que vai para a ilha, e nessa ilha existem outras pessoas. Qual é que é a grande cena? É que não existe uma personagem principal, ou seja, toda a gente chegou, não é uma pessoa que chega e estão os outros, todas as pessoas são indivíduos que chegam à ilha, portanto tu podes estar focado nesta personagem, mas depois de repente, tens outras duas personagens que estão a fazer outra coisa, e todos, todos eles fugiram. Portanto, não é a ilha real, não é ilha dos pescadores, não é ilha dos turistas. Nós tentámos muito claramente fazer com que fosse uma espécie de universo à parte, na minha cabeça a ilha é muito maior, portanto, continua a ter um lado inventado.

E é uma história que começa se calhar com algum desalento e depois alguma esperança, a certa altura cantas “esta tempestade que se abate, não vai poder ganhar”.
Esse é o ponto de viragem do disco sim, claramente, essa música. Isto para mim, resume exactamente o que é que é o disco, “a tempestade tempestade se abate sobre nós, não vai poder vencer”, a ideia quase ingénua, o amor é a verdade. E é uma cena tão simples, no final nós vamos ter que lutar pelo bem.
Não sendo um disco ativista, é um disco político?
É, sim. Há uma canção chamada “O Futuro Foi Cancelado”… mas não é um disco partidário, é um disco de consciência.
Neste disco há muito menos voz, tem muito menos canções cantadas, há várias que são só instrumentais, há várias em que a voz é manipulada e parece outra pessoa e nesses casos a letra é curta, umas frases repetidas. Decidiste dar mais espaço à música, para ser a música criar a história?
Desde o início, quando nasceu, havia ainda menos voz… a “Atrás da Barricada” nem sequer existia, é uma canção mais ou menos recente, porque no último nos últimos 2 anos eu estive só a trabalhar praticamente neste disco, tive que fazer arqueologia de ir buscar as malhas antigas e exportar as sessões que estavam dentro de uma máquina para computador, etc, e fui tendo mais ideias e as coisas com voz foram aparecendo mais tarde. Ou seja, eu dava primazia ao lado instrumental do disco, era a cena que eu mais curtia. Mas eu também gosto de canções, não resisto a pôr uma canção lá no meio. Mas sim, eu gosto de música instrumental, acho que hoje em dia a música é tão formatada e há tão pouco espaço para a música instrumental existir e eu tenho um bocado de saudades de poder… epá nós estamos a ensaiar agora para tocar ao vivo, estava a jammar um bocado a coisa com o António [Vasconcelos Dias] e com a Vera [Vera Cruz] e já estava a curtir bué, ter estruturas que não são… porque nós não queremos tocar o disco exactamente, eu quero que o concerto ao vivo ainda seja uma versão nova do que são as Berlengas, com a banda quero que exista espaço para acontecerem outras coisas no palco e na montagem do concerto, para que não estejas a ouvir os sons exactamente iguaizinhos. Quero que exista espaço para a coisa crescer ainda e ser diferente, se conheceres o disco vais reconhecer tudo, mas que tenhas surpresa. Não há backing tracks, nós temos caixas de ritmos e estamos a tocar ao vivo e a disparar os samples, há risco na coisa. Que eu acho que faz um bocado falta e às vezes o formato canção prende-te, verso/refrão/bridge, que também é fixe mas…
Então quiseste agora dar esse passo corajoso, de desafiar as convenções e fazer algo que teu público não estará propriamente à espera.
Corajoso não acho. Eu acho que não há nada mais aborrecido do que ouvires um artista… eu considero-me um músico, mas considero-me um artista também, que não é só ser músico, não é só tocar música, é pensares na tua obra, no teu catálogo, na mensagem queres passar, no impacto que queres causar. Eu acho que a música está cada vez mais formatada e mais igual e eu quero que a minha música seja cada vez mais diferente, e ao mesmo tempo também não quero enfiar-me a mim próprio numa caixa e não sair de lá. Eu tento tocar melhor todos os dias, tento cantar melhor, tento estudar piano, às vezes não consigo ser tão metódico como queria, porque faço demasiadas coisas ao mesmo tempo. Mas acredito que tu nunca deixas de aprender e eu quero continuar a aprender e eu quero continuar a fazer discos. Se calhar quero fazer um disco só de piano, e quero fazer um disco com uma orquestra, e quero fazer um disco de hip hop. Há tanta música que eu quero fazer que eu não acho corajoso, acho que é natural. Acho que é muito mais arriscado eu estar sempre a tentar fazer a mesma coisa. É muito difícil tu reinventar-te a 100%, e também não é o meu interesse fazer isso, eu gosto de canções, gosto das coisas que fiz anteriormente e gosto de ir buscar, já usei autoreferência várias vezes, as coisas vão em contínuo, mas pá, não sei se acho muito corajoso. Acho que há um lado corajoso que é de lançar singles que lançam singles, e que que não passam na rádio, mas ao mesmo tempo isso dá-me um gozo enorme. Há um lado de risco, isto é a minha vida financeira também, nos últimos 2 anos estive a investir tudo o que tinha para fazer este disco e depois lanço singles que não são singles e, portanto… mesmo para marcar concertos, isso às vezes torna-se complicado. Mas ao mesmo tempo eu acredito que as pessoas que gostam de música, se sentirem alguma identificação com o que está a ser feito e com com as mudanças que vão ser feitas, e se isso as deixar entusiasmadas e se isso estimulá-las de alguma maneira, para mim, isso é uma vitória imensa.
Já começaste a preparar o concerto, é um disco difícil de tocar ao vivo?
Não é um disco em que agarras nas guitarras e tocas tipo «esta é a música, estes são os acordes, esta linha de baixo», não é assim, de todo. Envolve tecnologia, envolve instrumentos um bocado alternativos para conseguires tocar e envolve muitos recursos técnicos. No concerto de lançamento só vamos tocar as Berlengas, não vou tocar mais nenhuma música, as pessoas vão lá para ouvir as Berlengas. Mas está-me a dar um gozo enorme pensar no aspecto visual do concerto, na maneira como nós vamos… eu quero despersonalizar o concerto, eu não sou importante, o importante é a música e as Berlengas e o conceito do disco. Está-me a dar um gozo enorme reinventar, é difícil, dá muito, muito trabalho, estou a trabalhar todos os dias há quase 2 meses.
E só estás a pensar dar este concerto, ou vários?
Epá, quero dar mais concertos. No ano passado, perdi muito dinheiro a dar certos concertos, de produções próprias. Este ano, nós vamos tocar o que conseguirmos, eu quero tocar este concerto, quero tocá-lo bem e atingir o limite de endividamento [risos], pá eu acho que é importante falar disto também. Fazer este disco também foi um bocado sacrifício pessoal de hipotecar todo… hipotequei toda a minha vida financeira e todos os projectos que poderiam dar retorno financeiro para poder fazer isto. E essa liberdade artística é algo que eu prezo muito, mas eu não vou fazer concertos para preencher uma agenda e fingir que estou cheio de concertos, quero fazer os concertos quando houver oportunidade de os fazer. Temos aí coisas na calha, há coisas que estão agendadas e coisas que estão programadas, e outras que estão nas confirmações, acho também que a estratégia de lançar não singles às vezes vira-se um bocado contra ti nesse aspecto do booking, porque hoje em dia o booking está uma loucura de malta a tocar e de bandas e projectos, os putos todos a lançar cenas, portanto estás a competir num mercado que está muito cheio, mas pronto, queremos ir ao Porto, queremos ir a Coimbra, eu gostava de ir ao Algarve, gostava de ir ao Alentejo.
Voltando um bocado atrás há bocado estás a dizer que gostavas de fazer um disco a solo piano ou um disco orquestral ou de hip-hop. Eu consigo encontrar essas 3 coisas neste disco. O piano clássico é o elemento central, um bocado Sakamoto meets Flaming Lips, a atividade principal está a acontecer no piano, mas depois há toda uma série de coisas à volta, de ritmos fortes e electrónicas quase clubbing.
Começou com a electrónica, não começou com o piano, curiosamente.

Ah, tinha a sensação de ser uma coisa muito metódica, escrita em pautas e tocada ao piano, depois é que acrescentavas as outras camadas.
Depende de música para música, mas este disco começou como uma experiência electrónica e quando começa, sei lá, começas com umas ideiazinhas, tens os projetos ali na MPC, tocas umas coisas, aquilo tem uns loops e daí até ser uma música do início ao fim… Houve uma altura que eu até pensei «vou convidar a Capicua para para rappar aqui em cima» nos loops que eu tinha, alguns nem sequer chegaram ao disco. Passaram-me assim uma série de ideias pela cabeça. As “Berlengas (parte 1)” é uma canção que eu fiz ao piano, que é a abertura do disco mas não foi a primeira música que eu fiz, foi uma música que surgiu, pá, já tinha algumas ideias electrónicas e depois de repente o piano é que entra na equação e depois vai trazer esta… há sempre uma tensão entre o piano e electrónica, e como é que o piano encaixa com electrónica, não tinha pautas a escrever, nem cifras tinha. Aliás, eu acho que este disco foi o disco em que menos anotei, o que eu tenho [diz, enquanto nos vai folheando o seu caderno manuscrito e bastante bem organizado] é tipo letras, conceitos, histórias da Berlenga, geografia da Berlenga, alinhamentos.
Então deste mais atenção ao conceito primeiro, depois trataste da música.
Não sei se a priori, foi um processo muito caótico ao longo do tempo, a partir do momento em que tens uma série de músicas, tens um corpo de trabalho, pensas «ok, isto é um disco, eu tenho esta ideia que são as Berlengas, que é vaga, esta música sugere-me algo», depois há umas que se calhar não sugeriam, que eram ideias musicais perdidas, não sugeriam e eu «ok, nesta parte da narrativa, esta música vai ser sobre a libertação», por exemplo, na passagem da “Praia!” para “A Grande Libertação”, a “Praia!” era uma das primeiras músicas do disco, já é bastante antiga, e a ideia estás perdido na praia, é um bocado dar à costa, é um bocado a ideia de ficares encalhado e ficas encalhado entre o passado e o futuro, porque o disco fala muito do eixo passado-futuro, de estares agarrado ao passado ou quereres seguir em frente.
E aí cantas “só quero voltar atrás, não quero voltar atrás”.
Exactamente. E depois a seguir, na “Grande Libertação”, as vozes dizem “volta para trás, volta para trás”, que é o mar, a ideia é ser o mar a chamar, e é uma conversa, é quase as sereias do mar a dizer “não, o passado reclama-te, volta para trás, volta para trás” e a personagem diz “Não, não, não, vou-me libertar”. E isso não estava…eu tinha uma ideia de electrónica que me sugeria libertação, isto é algo libertador, esta cadência musical e, portanto, tentar trabalhar quase a literatura do disco sem ser letra, uma espécie de um diálogo, eu até escrevi aqui [volta a mostrar o manuscrito] «implora ao passado, vou-me libertar, insistem as vozes vindas do oceano», e é esta ideia de criares ali um mini-diálogo. Depois vi documentários sobre bailados, a ideia de ópera quase fatalista, quis meter esse lado no disco também. Mas portanto não houve notação, não escrevi muita música.
Sinto que isto é um organismo muito vivo, que se alimenta e vai alimentar-se das vertentes que o rodeiam, nalguns casos a letra alimenta a música, a música alimenta a letra, a música alimenta a imagem, a imagem e a dança vão depois alimentar a música. Isso, agora com os concertos, é uma coisa que vai ser ainda mais exponenciada?
Sim sim. E a ideia é em 2025 fazermos um espectáculo com tudo: dança, música, imagem. No Verão vai sair o filme. A ideia é materializar desmaterializando. Sai o disco e vai haver concerto, e o concerto já é uma releitura da música. Depois sai o filme, que é também uma leitura da música com a dança e com todos os aspectos visuais. E também tenho um plano, quando nós já soubermos tocar isto tudo, curtia fazer uma sessão de estúdio e gravar com a banda isto ao vivo. Criar um documento, se calhar no final da tour, fazer uma versão de banda, que eu acho que vai ser melhor que o disco.
Eu vejo este disco como a tua magnum opus, o teu trabalho mais magnificente.
É um bocado megalómano, há um lado megalómano [risos]. Para mim já é muito difícil ter uma visão muito clara sobre o disco depois de ter feito, foi muito intenso, mas são 20 músicas, eu queria que fosse grande, queria que tivesse escala, não quero que o disco dure duas semanas, perderes este tempo todo e depois estares duas semanas a tocar e depois acabou o disco e faz outra coisa… eu quero levar o disco às pessoas, eu sei que não é um disco muito fácil de apreender ao início, portanto, também há um lado meu de fazer o esforço de querer levar o conceito às pessoas, sei que hoje em dia nós estamos no feed e estamos sempre a consumir coisas muito rápidas e este disco é o contrário disso também. Eu também quis pôr um bocado o pé no travão, fazer música que espero que valha a pena, que as pessoas possam perder o tempo para ouvir. Também é tão frenético, eu fui tão longe em certos aspectos, em termos de produção, houve cenas em que eu perdi tempo que acho que muito pouca gente teria paciência para perder tempo a fazer as coisas de determinada maneira, porque eu sou um bocado old school a fazer, métodos de produção que demoram mais tempo a executar e, portanto, eu levei o conceito um bocado longe demais, talvez.