Foi um amor em comum por um disco de Chico Buarque que juntou o português Benjamim e o inglês Barnaby Keen há uns quantos anos, que criam agora a meias 1986, um disco soalheiro regado de influências luso-brasileiras e anglo-americanas que só poderia ter conhecido a sua estreia no Festival Músicas do Mundo, em Sines.
Em 1971, Chico Buarque lançava Construção, álbum de canções inventadas longe de casa no exílio italiano, que viria a ser um dos seus mais bem celebrados trabalhos no Brasil e no estrangeiro, contado com temas como “Deus lhe Pague”, “Cotidiano” e, claro, a própria “Construção”. Mais de uma década depois nasciam, como nascem todos os dias, dois músicos separados por um mar que viria a encolher: em Lisboa, Portugal, Walter Benjamin (Luís Nunes), e, em Inglaterra, Barnaby Ken. O ano era 1986, que baptiza o disco que nasce trinta anos depois.
Antes de Auto-Rádio (2015) – no qual deixa cair o primeiro nome, aqui regressado – antes de se estrear nos discos próprios em 2012, com The Imaginary Life of Rosemary and Me, e ainda antes de colaborar atrás ou à frente da cortina com nomes como B Fachada, Minta & The Book Trout ou You Can’t Win Charlie Brown, Benjamim trocou por momentos o sol de Lisboa pelo frio de Londres, vivendo como técnico de som em concertos e ocasional escritor de canções suas. Foi aqui que travou conhecimento com o local Barnaby Keen, também ele músico e produtor, e começaram a partilhar cantigas e palavras, do inglês ao português, que Keen aprendera numa fugida para o Brasil numa perseguição apaixonada. Quem lhe escutasse o português abrasileirado e lhe visse o coração amolecido mais facilmente o chamaria carioca do que londrino.
Foi Construção, de Chico, o amor em comum que aproximou os músicos, que lançam agora o álbum 1986, um álbum bilingue e multi-instrumental, tributo ao ano em que nasceram ainda sem se conhecer, a Chico, à língua universal da música. Nele, encontramos oito canções de pop orelhuda que se ouve da mesma forma em Londres ou em Lisboa, percebendo ou não o que canta ora Benjamim, ora Keen, pintadas com as mais diversas influências, desde o rock direto dos anglo-americanos (como o balanço despreocupado da bateria e da flauta de “Warm Blood”, que abre o disco) ao samba descalço dos brasileiros (no fundo de “Dança com os Tubarões”, a cuíca brincalhona remete-nos imediatamente para o álbum de Chico que veio a unir os dois músicos). Em “Terra Firme”, os versos melancólicos e desapegados na voz suave de Benjamin (“ao acordar / mais valia flutuar / que esses dias tão dormentes / e és só sobrevivente / do azar) trazem à recordação um B Fachada da década passada (de quem Benjamim é amigo e frequente colaborador). É um disco que bebe um pouco de todos os copos à mesa, a agulha que injeta no prato um pouco de Lisboa, um pouco de Londres e um pouco mais de tudo o resto.
Por isso, faz apenas sentido que este álbum de oito cantigas de braços esticados, por entre um mar que parece encolhido, tenha conhecido os ouvidos do público no Festival Músicas do Mundo em Sines, no mês passado. Afinal de contas, é um álbum que, apesar de nascido em Lisboa, talvez fosse embrião num apartamento Londrino há meia-dúzia de anos. Ou, só talvez, uma parte dele já viesse de boleia, escondida num bolso da bagageira, em 1971, no álbum de canções exiladas de Chico Buarque, mesmo muito antes de 1986. Há coisas que já estão escritas antes de sequer as lermos.