De quando em vez, Surma regressa aos discos, embora nunca esteja verdadeiramente parada nesses lapsos de tempo. A criatividade é que a move e a inquieta. Alla é o seu disco do dessossego.
“Feliz o país que não tem geografia”, Saki (H. H. Munro), The Unbearable Bassington
Quando Alberto Manguel escreveu, em 1980, o seu Dicionário de Lugares Imaginários (Tinta-da-China, agosto de 2013), não o fez acompanhado de qualquer banda sonora, naturalmente. No entanto, num mero exercício de imaginação (pois claro), se uma futura edição pudesse contemplar livro e música, Surma seria perfeita para a ilustração sonora desejada. Até porque é isso que Débora Umbelino, o nome português dessa voz cada vez mais internacional, cada vez mais do mundo, sempre fez: dar sons e ritmos à imaginação de lugares que existem em alguns minutos de tempo musical. Por isso é que gostamos tanto dela, e por isso é que Surma nos leva a conhecer o que só ela conhece, embora saibamos que o destino que nos traça será sempre tão longínquo, quanto inusitado. Na verdade, nunca sabemos bem onde estamos, mas a sensação de que estamos bem e em boa companhia nunca se perde. É seguro partir em direção a Alla, como é garantido e certo o regresso ao ponto de partida. Ladies and gentleman, we are floating with Surma!
Alla, assim se diz em qualquer dicionário sueco, é a palavra que remete para a ideia da totalidade, uma expressão sem género que pode albergar tudo e todos. Talvez por isso Surma tenha trazido tantos amigos para este seu novo longa duração. São mesmo muitos, a saber: Pedro Marques, Cabrita, Victor Torpedo, Selma Uamusse, Ana Deus, João Hasselberg, Pedro Melo Alves, noiserv, Ecstasya, Joana Guerra, Angelica Salvi (que belo disco tem este ano) e Rui Gaspar, produtor, músico e parceiro de longa data.
Ouvir Alla é, portanto, habitar um país encantado que se perde e se encontra na nossa própria cabeça, embora seja na de Surma que tudo tenha começado. E começou com “etel.vina”, tão melancólica quanto bela homenagem à sua avó materna, que abre Alla e que poderia muito bem ter sido single de apresentação do disco. Mas não foi, isso coube a “Islet”, a primeira das composições gravadas em Alla, com a curiosa introdução de uma qualquer rádio espanhola e de um qualquer programa do país vizinho. Passado o intróito, a faixa ganha uma força tremenda (aqueles gritos um pouco acima do sussurro são muito bonitos) e lança-nos para o muito que vem a seguir. Na música de Surma, como bem se sabe, há um fascínio por um universo que, talvez por falta de melhor expressão, por preguiça ou desconhecimento, associamos a Björk. Isso nota-se, mais uma vez, na construção sonora, na voz trabalhada, nos arranjos, no espaço sem lugar das suas melodias (o disco é mesmo muito melódico). “Tous Les Nuages”, uma das mais belas canções de Alla, é um bom exemplo do que afirmamos, embora ainda possamos acrescentar um certo e subtil toque a lembrar as manas Bianca Leilani Casady e Sierra Rose Casady (CocoRosie). Tudo fica mais bonito assim, no embalo cómodo e inquietante dessas combinações sonoras com a voz criativa e especial de Surma. Mas destaquemos mais alguns temas, como “Nyanyana” (Moçambique está ao virar da esquina), “Myrtise” (um feliz e cândido momento onde encostar a cabeça, apesar da fria atmosfera circundante), “Did I drop acid and this is my ego death?” (meio techno, embora com belíssimo piano escondido algures pelo meio) e “Nico, My Love”, referência a uma paixão de sempre – os Velvet Underground -, como se com eles estivessem a brincar num qualquer playground sem tempo e sem lugar.
Alla é um dos mais bonitos discos do ano português, e dele ficaremos próximos até à próxima aventura sonora da menina cada vez mais crescida de Leiria, de Portugal e do mundo inteiro. O mundo é o umbigo dela e nela ecoa o umbigo do mundo. Agora que o ano se aproxima do fim a passos largos, não deixe para 2023 o que ainda pode e deve ouvir em 2022. Será caso para se dizer, numa piscadela marota de olho, Alla, que se faz tarde.