Quase toda a gente conhece João Gil. Não dos Trovante (embora já tenha recebido mails, ao engano, a convidar para almoços de confraternização com os autores de “125 Azul”), mas decerto já todos ouvimos os seus acordes, em bandas como You Can’t Win Charlie Brown, Diabo na Cruz, Feromona ou Julie and the Carjackers. Pelo meio, João Gil atirou-se de cabeça num projecto em nome próprio. Chama-se Vitorino Voador, lançou em 2012 o primeiro EP e lança agora, com o selo da Azáfama, o primeiro longa-duração – O dia em que todos acreditaram. Num dia em que poucos acreditavam que pudesse estar tanto frio na rua, fomos falar com Vitorino Voador, numa esplanada em Lisboa, para perceber de onde lhe vem esta música em nome próprio.
Altamont: Tu já andas nisto da música há algum tempo e tocas, ou já tocaste, em inúmeras bandas. Como é que chega a tua carreira a solo? É a tua faceta mais pessoal?
Vitorino Voador: Sim, no fundo tem a ver com o facto de tocar nessas bandas todas. Vitorino Voador surgiu exactamente pela necessidade de não… desperdiçar, não é a palavra certa, porque parece uma coisa má. Mas houve ali uma altura em que em comecei a compor muito – eu sempre compus, desde que comecei a tocar sempre me deu gozo fazer músicas minhas, trabalhá-las, gravar – mas houve ali uma fase em que estava a tocar com [You Can’t Win]Charlie Brown e Diabo na Cruz e fazia muita música, mas nada daquilo que fazia se encaixava nas bandas. Pá, em Diabo na Cruz as músicas são feitas pelo Jorge [Cruz] e depois são trabalhadas em banda, mas em Charlie Brown, é uma banda que tem ideias de raíz de cada um dos membros. E eu não andava a conseguir fazer nada que seguisse aquela linha da nossa música em YCWCB, mas eu gostava das músicas que fazia e senti que era a altura certa para fazer isto. Não foi há dez anos quando eu tinha 20 e poucos, não foi há 5 anos quando comecei a tocar com Diabo na Cruz, achei que agora era o momento certo para fazer isso. Isto depois passa por uma data de coisas um bocado pessoais, de fases de acreditar um bocado mais naquilo que faço a solo – o nome do disco também tem a ver com isso
Foi o dia em que tu acreditaste.
Em que eu acreditei e acredito que as pessoas também podem acreditar naquilo que eu faço, que é uma coisa que pode ter um lugar, na música. Não estou a falar da qualidade daquilo que eu faço, acho é que existe um espaço para toda a gente na música, às vezes passa um bocado por acreditar naquilo que fazemos. Quem não acredita…
Portanto foram precisos estes anos a fazer coisas diferentes, foste maturando as ideias. Se tivesses lançado antes, não terias esta confiança?
Sim, bastava ter sido há 5 anos que era talvez uma coisa que já nem existisse, que não fazia sentido e provavelmente seria uma coisa forçada de “pá, tenho de mostrar que estou aqui, não interessa se tenho alguma coisa para dizer ou não, mas as pessoas têm de saber que eu cá estou”. E agora não, agora há uma razão de ser, há uma mensagem que eu tento transmitir, que é muito pessoal. E isso faz com que muita gente não goste daquilo que eu faço, porque às vezes é demasiado pessoal e eu percebo que nem toda a gente quer ter que levar com a história da vida de outro gajo qualquer, epá, respeito isso. Mas ao mesmo tempo também é uma coisa que quando me aproxima das pessoas, aproxima-me realmente das pessoas, e isso é bonito porque quando alguém vem ter comigo e fala da música que eu faço a solo, fala-me sempre como se me conhecesse e isso é bom. Eu gosto de sentir isso, gosto dessa proximidade com as pessoas com quem converso e é mais uma razão para eu continuar a fazer música.
Este álbum é bastante íntimo?
É. Já o EP era, este disco é, tenho a certeza que aquilo que fizer daqui para a frente continuará a ser, porque é a minha linguagem e a minha forma de fazer música. Eu não sou o contador de histórias perfeito, as coisas sobre as quais eu escrevo não são inventadas, são coisas que eu vivo no meu dia a dia, até podem ser coisas que eu não vivi, mas assisti, são sempre coisas muito pessoais e que me tocam. Não consigo escrever sobre o cavaleiro que veio salvar a princesa da masmorra.
É quase como um diário?
É, é mesmo. Eu geralmente não digo ‘diário’ só para não chocar as pessoas. Mas é uma coisa muito confessional e altamente terapêutica.
E quando pões cá fora, ajuda-te a ultrapassar situações menos boas?
Sim. Se aquilo sobre o que eu estou a escrever for um problema, ajuda-me a ultrapassar esse problema. Mas eu não escrevo só sobre problemas da minha vida, não sou um choramingas… às vezes sou, mas nem sempre. Mas é um diário, que eu abro ao público e olha, leiam, ouçam-me aí um bocado.
Quando é que começaste a escrever as canções que estão neste disco?
Nem todas foram feitas agora. Por exemplo o single, em que o David [Noiserv] participou, é uma música que já vem comigo desde a fase do EP. Eu gravei o EP e fiz a música logo a seguir, finais de 2012, e comecei logo a tocá-la nos concertos. E comecei e sentir que gostava mais de a tocar do que o single do meu EP. No final de um concerto, o David veio ter comigo e disse que gostava da música. E eu mais à frente quando pus a hipótese de ter convidados no disco, pensei logo no David, porque tinha sido uma das primeiras pessoas a vir ter comigo e falar-me de uma música minha. E eu não gosto de convidar pessoas para participar numa música minha e dizer-lhes o que é que eu quero que elas façam. E neste caso foi a oportunidade perfeita de ter um amigo meu de quem eu gosto muito, um músico que eu adoro e que tem um talento gigante, a tocar numa música que ele gostava.
Aí a coisa fica mais natural.
Fica mais natural, ele vai participar numa música que ele gosta de ouvir, o contributo que ele der à música vai ser uma coisa super genuína e sincera, mais do que se eu disser para fazer umas guitarras aqui ou uma voz naquela parte e é isso que eu quero. A única coisa que ficou decidido foi que ele tinha liberdade total para fazer o que quiser, mas quando me enviasse íamos conversar os dois sobre isso e tentar arranjar uma coisa que agrade aos dois. Mas nem foi preciso, aquilo que ele me enviou, adorei. Gravou uns teclados e uma guitarras, cortou-me a música, que ele tem essa mania de cortar as músicas aos bocados, mas a verdade é que a música ficou muito melhor. Foi uma alta experiência. Depois tive mais convidados, que também adorei, mas tudo gente amiga.
Mas não há assim muita gente a tocar, porque tu tocas praticamente tudo.
Sim. Não que isso seja um objectivo meu, é uma coisa que acaba por acontecer naturalmete, porque eu gravo as minhas músicas num estudiozinho que tenho, onde tenho os meus instrumentos, vou tendo as minhas ideias para as músicas e vou acabando por gravar aquilo que faço. Mas houve coisas que eu senti que a música ia ganhar muito mais se tivesse um músico que soubesse, a tocar aquilo. Foi o caso das baterias, que pedi ao António [Vasconcelos Dias, de Tape Junk, etc] que é um baterista que eu adoro, o Ricardo Jacinto a gravar cordas, que é um alto músico. Tenho a sorte de estar rodeado de grandes músicos e acaba por ser fácil surgir esse convite.
E foi muito demorado, tendo tu de tocar quase todos os instrumentos?
Não é muito demorado, porque eu quando começo a querer gravar, normalmente entro numas fases de loucura e passo dias e dias enfiado no estúdio a gravar, de manhã à noite, e acabo por avançar muito rapidamente nessa fase. Porque é uma coisa que me dá alto gozo, há muita gente que vai para o estúdio e chega ao fim do dia e está de rastos, eu gosto daquilo. Acaba por ser quase um jogo, é um puzzle que eu acabo de montar, e dá-me gozo ver aquele passo a passo, ir ouvindo a música e ver para onde é que ela está a seguir, muitas vezes durante a fase de gravação a música acaba por seguir um caminho diferente do que aquele que eu tenho inicialmente quando estou só a tocar uma linha qualquer no piano ou uma melodia de voz na minha cabeça. Gosto daquilo e acaba por ser uma fase rápida.
E como é que foi a questão de cantares – como frontman?
Pá, isso é uma pergunta interessante, porque realmente é uma coisa em que eu sou muito frágil. Frágil porque eu não sou um cantor, nem tento enganar as pessoas com isso. Não tenho a técnica vocal por exemplo do Afonso [Cabral, YCWCB], que é um dos melhores melhores vocalistas com quem já me cruzei. Nem tento ser, porque eu sei que não tenho capacidade para o fazer. Aquilo que eu dizia há bocado de sentir que existe um lugar para mim é que eu acredito que nem toda a gente tem que ser um grande cantor, e eu demorei um bocado a perceber isso. E hoje em dia sinto que aquilo que eu consigo fazer com a voz, é perfeito para aquilo que estou a fazer em Vitorino Voador. Ainda que eu queira aos poucos ir tendo umas aulas de canto e aprender alguma técnica, mas essa fragilidade que eu tenho na voz até acaba por me separar de outros cantores, e acaba por ser um desafio para mim, porque é sempre uma coisa em que eu me sinto um bocado inseguro e me deixa nervoso. Mas foi uma coisa que tive de fazer e obriguei-me a a mim mesmo a andar para a frente. Este é o meu maior desafio, mas também me dá muito gozo.
Em que medida é que estas tuas canções em nome próprio vão influenciar, ou já influenciaram, a música que fazes com as tuas várias bandas?
Eu sinto que as bandas por onde passei (Diabo na Cruz, YCWCB, Feromona, Julie and the Carjackers…) me deram a ganhar bastante. Toquei com tantos músicos diferentes, de quem eu gosto bastante, e sinto que absorvi muita coisa que aprendi com eles, que ficou aqui e me serviu depois para as minhas músicas e para a forma como componho. Eu acho que acabo por levar um bocado de tudo isso quando começo a fazer um novo disco, por exemplo com Charlie Brown agora, ainda estamos numa fase muito inicial de fazer as músicas, só tivemos um ensaio – mas aquilo que eu fiz, como membro do grupo, já não é igual ao que eu fazia no Chromatic (2010), eles já me influenciaram de tal maneira que quando começo a compor, para Charlie Brown, já me sinto muito mais preparado para isso, há um click na minha cabeça que me sintoniza, agora sou o João Gil dos Charlie Brown, entro no modo certo da banda, não me vou meter a fazer coisas que não façam sentido para esta banda. Mas todos os grupos me influenciam e depois quando estou a dar o meu input, no trabalho novo, acabo por levar um bocado de todos comigo. Eu explicava-me melhor a fazer-te um desenho disto, um quadro só com cores, que iam fazer perceber exactamente o que eu sinto, daquilo que as bandas me dão a mim, do que eu dou às bandas depois.
E como é que levas estas canções ao palco?
Logo desde o início que planeei uma coisa na minha cabeça. Quando eu fiz o EP estava com a mania das grandezas e como gostava de ouvir várias versões da minha música, planeei três formatos: um a solo, só com guitarra e piano; outro em duo, com o Zé Castro, que é um dos tipos que mais gosto de ver, ligados à electrónica, a fazer beats; e depois ter um formato de banda grande, onde poderia encher um palco. Claro que quando comecei a tentar montar e quando cheguei à altura dos concertos, só consegui mesmo o duo, que adorei. Mas não consegui o formato banda, que era o que eu queria mesmo. Então o que tenho planeado, agora com o disco, é mesmo fazer o concerto com banda. Não vou deixar de fazer as apresentações a solo, em clubes pequenos, mais perto do público. Mas quero finalmente ter a banda que sempre sonhei, a dar um concerto grande, sonicamente bem preenchido. A banda que eu já estou a formar, é uma banda em que toda a gente vai fazer muita coisa, se calhar tocar dois instrumentos ao mesmo tempo. E são pessoas que se interessem da mesma maneira que eu pela música e pelos instrumentos. E ao vivo quero isso, por um lado mais experimental, mas para fazer o que faço em disco – se a música tem 3 guitarras no disco, vai ter 3 guitarras ao vivo.
E já tens datas?
Vou começar agora a marcar tudo. Nesta altura, Fevereiro/Março, tenho concertos de Diabo na Cruz. Quando isso acalmar um bocado arranco com os meus concertos. Lá para o final de Março, início de Abril. A coisa complicada de tocar com várias bandas é essa, não me cansa a cabeça, adoro tocar com todas as bandas, só é complicado conciliar a agenda. E Vitorino Voador – por muita vontade que eu tenha de tocar ao vivo – tem de esperar pela altura certa, senão depois também vou matar um bocado as apresentações ao vivo. Tem de ser uma coisa com pés e cabeça.